O Massacre de Eldorado dos Carajás: 16 anos depois
Antropologia

O Massacre de Eldorado dos Carajás: 16 anos depois


Em 17 de abril de 1986, dezenove sem-terra foram brutalmente assassinados no município de Eldorado dos Carajás devido à ação da polícia militar do Estado do Pará, encarregada pelo então governador a desobstruir a rodovia BR-155. Devido à sua gravidade, este evento emblemático entrou para a história como um marco da trajetória de luta política recente por reforma agrária no Brasil, tornando-se o "Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária".

Enquanto evento crítico, a tragédia marca a conturbada passagem de um regime político ditatorial (onde os movimentos sociais eram tratados como 'caso de polícia') para o início de um processo lento rumo ao estabelecimento da democracia. Outros eventos com o mesmo grau de relevância ocorreram na década de 1990, como o massacre na Praça da Matriz, em Porto Alegre, e outras manifestações políticas brutalmente combatidas por uma Polícia Militar despreparada para abordar o problema em um contexto de democracia recente. A violência que perpassa a ação das forças policiais é o indicio de um autoritarismo gestado em anos de militarismo e mandonismo, onde as questões sociais eram reprimidas sem qualquer parcimônia. Foram esses eventos que permitiram - na medida em que se tornaram paradigmas ou bandeiras de ação política - 'inventar' uma nova forma de luta social no campo da reforma agrária: as manifestações públicas (como marchas, comícios e passeatas) e as ocupações de terras improdutivas. Esses novos instrumentos de luta política conseguiram romper minimamente com o silêncio pós-abertura democrática, marcado pelo imobilismo político e a total ausência de discussão séria sobre os problemas estruturais que levaram ao golpe militar de 1964 (entre eles, a reforma agrária). Com isso, criou-se um espaço descontínuo entre a forma como o problema afeta diversos setores da sociedade civil e a total incapacidade governamental de abordar a questão com seriedade, a partir de políticas públicas sólidas e duradouras. O que se vê, de fato, é uma política fragmentada e em grande parte desorganizada de pequenas concessões sem qualquer planejamento administrativo.        

O Massacre de Eldorado dos Carajás é um símbolo importante de uma questão social e política ainda não resolvida pelo governo brasileiro: a reforma agrária. As políticas nessa área ainda são insuficientes diante da magnitude estrutural (e estruturante) da questão agrária para o desenvolvimento sustentável da sociedade como um todo. A despolitização do tema - acompanhada pela sua transformação em 'problema técnico' - levou a emergência de um campo alternativo de luta política e resistência, os movimentos sociais camponeses. Apesar da incapacidade dos governos em tratar a questão com a devida seriedade, o tema é polêmico e se desdobra em inúmeras batalhas civis e cotidianas entre os 'ruralistas' e sem-terra.

Em 2003, tive a oportunidade de acompanhar de perto uma dessas batalhas: o eminente conflito entre uma marcha de sem terra e uma 'contra-marcha' de ruralistas na região de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, devido aquela que poderia ter sido (mas não foi) a primeira grande desapropriação de terra do então recém-eleito governo Lula. Até hoje as famílias de sem terra continuam acampadas na região, aguardando pelo encaminhamento da questão.

De fato, a problemática que está na origem desta tragédia ainda se faz presente como realidade contemporânea na vida de milhares de brasileiros e brasileiras. A ausência dos meios materiais (a terra, a tecnologia, etc.) para os camponeses se reproduzir socialmente e economicamente - ao lado de um dos maiores índices de concentração fundiária - resulta em uma guerra que perpassa diversos setores da sociedade civil. Infelizmente, os governos não tem assumido a responsabilidade de dar a devida relevância que o tema exige na agenda política nacional.

Ao mesmo tempo, assistimos ao crescimento das vítimas dessa batalha cruel, com o constante assassinato de lideranças políticas envolvidas diretamente com a luta por reforma agrária. Sem falar que 16 anos após o massacre de Carajás, os 155 policiais envolvidos na ação permanecem soltos e ainda não foram condenados criminalmente. E não se trata aqui de uma exceção, mas de uma tendência que se faz presente na histórica impunidade daqueles que agem fora da lei, abusando da sua autoridade de forma indevida e inconstitucional, ceifando vidas de trabalhadores rurais que lutam por seus direitos políticos.    

Como podemos ver, passaram-se 16 anos e ainda é preciso relembrar. Em 2008, tive a oportunidade de cruzar pelo fatídico local onde ocorreu a tragédia. Havia lá cruzes em estado de  abandono onde deveria haver um museu ou algo do gênero. É preciso reforçar a memória coletiva e reafirmar constantemente o significado de eventos históricos como este. Para que não se perca junto com as vidas o sentido da luta, é preciso dar vida a história recente através da produção de monumentos da memória. Reviver o passado é também uma forma de construir o futuro. O esquecimento, neste caso, significa a incapacidade reflexiva de reviver o tempo vivido, repleto de sangue, carne e suor. Esse tempo - que reaparece constantemente em outras formas, que se reproduz entre as novas gerações de sem-terra, que afeta a vida e que produz novas vítimas a todo momento - esse tempo da experiência histórica precisa ser sustentado pela ação de relembrar e de reviver os momentos significativos de nossa história recente. Ao não fazermos isso, corremos o sério risco de andar para sempre em círculos intermináveis, de reproduzir constantemente os mesmos problemas, as mesmas demandas, as mesmas mentalidades e formas de ação política que nos conduziram ao insucesso e a tragédia.

Para avançar é preciso tornar o passado significativo (no presente). A melhor forma de fazer isso é reafirmar a importância e o significado que perpassa essa grande tragédia humana que foi (e continua sendo) Eldorado dos Carajás.



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