Antropologia
O Movimento Passe Livre e a Revolta dos Manifestantes
Na última semana acompanhamos "ao vivo" cenas de violência policial contra manifestantes civis que ocuparam diversos setores da cidade de São Paulo, parando vias públicas com suas bandeiras de luta e gritos de guerra. Tratava-se de manifestações políticas pacíficas do Movimento Passe Livre, coletivo civil a-partidário que luta pela tarifa zero e por melhorias no transporte público das grandes metrópoles brasileiras. A ação foi organizada após o governo paulista anunciar um novo aumento no preço das passagens. Esse evento ocorreu paralelamente a outros atos civis em prol da defesa do transporte público, gratuito e de qualidade, em cidades como Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, Fortaleza e Brasília.
O Movimento Passe Livre (MPL) representa uma importante inovação no cenário político brasileiro, tendo surgido oficialmente, em 2005, na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em Porto Alegre. Desvinculado de qualquer partido político, em poucos anos o coletivo de manifestantes conseguiu forjar unidade a partir da multiplicidade, unindo uma diversidade de vozes em torno de um interesse em comum. Antes disso, no entanto, já existiam movimentos em defesa do passe livre em outras cidades brasileiras, como é o caso de Florianópolis. Conforme informações prestadas pelo MPL, eventos como a "Revolta do Buzu" (Salvador, 2003) e as "Revoltas da Catraca" (Florianópolis, 2004-5) são marcos da recente história de mobilizações civis em defesa do transporte público gratuito e de qualidade. Conforme argumentam os membros do MPL, o transporte não pode ser tratado como mercadoria, pois é o único meio de locomoção dos setores mais pobres da população - estudantes, trabalhadores e desempregados - que dependem dele para exercer outros direitos civis, como o acesso ao trabalho, à educação, aos serviços de saúde e lazer. [Site "Tarifa Zero" e MPL].
Os abusos cometidos pela polícia militar diante das manifestações do MPL demonstram claramente o seu total despreparo para lidar com atos políticos civis mesmo após vinte anos de democracia e às vésperas do país sediar uma copa do mundo. O uso recorrente de bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e spray de pimenta contra manifestantes nos remete à abordagem truculenta que os militares dispensavam aos movimentos populares na época da ditadura, evidenciado uma atitude anti-democrática do poder público, marcado pelo uso abusivo da autoridade policial contra a população civil. Essa atitude acabou incentivando a revolta de alguns grupos de manifestantes, que agiram em resposta à repressão com cenas dignas de uma rebelião popular, com depredação de bens públicos e privados, como o ataque a paradas de ônibus e a instituições do setor financeiro. Essas cenas de batalha foram televisionadas para o mundo inteiro e em poucos dias os atos civis se multiplicaram em várias cidades do Brasil. Essas manifestações também foram fortemente reprimidas pela polícia, que performou, em pleno século XXI, cenas dignas de uma ditadura militar, o que representa um grave retrocesso na ainda recente democracia brasileira.
Ao mesmo tempo, em um claro exemplo de mau jornalismo, os grandes meios de comunicação transmitiram a notícia de forma superficial, nomeando as manifestações civis de "vandalismo". Nas palavras do guru decadente das organizações tabajaras, Arnaldo Jabor, tratava-se de uma "ação isolada de pessoas que não têm o que fazer e resolveram criar transtorno atoa". Nos primeiros dias de cobertura jornalística os manifestantes foram classificados como "vândalos" e estigmatizados como baderneiros nos principais telejornais brasileiros, com destaque especial para a rede globo. Ao invés de informar a população sobre as motivações legítimas dos manifestantes e os abusos evidentes da polícia, a primeira postura da mídia foi 'ocultar' as motivações dos manifestantes e deslegitimar suas ações políticas através das constantes acusações de vandalismo. Essa postura foi reforçada pelas declarações iniciais do governador e do prefeito de São Paulo, que não reconheceram qualquer legitimidade política nas ações do MPL, apoiaram a ação repressora das forças policiais e se colocaram contrários a qualquer forma de negociação com "vândalos".
Mais tarde, no entanto, diante da divulgação dos eventos na mídia internacional e da mobilização da população através das redes sociais - além do ataque sofrido pelos próprios repórteres que acompanhavam, nos últimos dias, os eventos na rua - o jornalismo tupiniquim 'voltou atrás' e resolveu 'representar' os atos políticos dos manifestantes como um movimento civil legítimo, apesar dos exageros cometidos por 'grupos isolados". Nunca antes a mudança de perspectiva jornalística sobre eventos políticos nacionais foi tão evidente como no caso das manifestações do MPL. Com o passar dos dias, os representantes governamentais também flexibilizaram seus discursos em nome do diálogo com o Movimento. Essa mudança radical de postura por parte da mídia e dos governantes reflete, em grande medida, a mobilização massiva da sociedade civil nas redes sociais, o que permitiu colocar em ação um poderoso plano de contra-informação, esclarecendo a sociedade brasileira sobre o serviço de desinformação performado em tempo real pelos grandes meios de comunicação.
Em um dos melhores exemplos de mobilização popular que a sociedade brasileira já produziu nas últimas décadas, os "manifestantes", conforme passaram a ser denominados na grande mídia, fizeram uso das redes sociais para planejar novos atos políticos em praticamente todas as grandes capitais brasileiras. Essas mobilizações culminaram em múltiplas ações coordenadas que ocorreram simultaneamente, no dia 17 de junho, em diversas capitais, do norte ao sul do país, mobilizando milhares de pessoas. Além dos membros do MPL, simpatizantes de outras causas políticas aderiram às manifestações e multiplicaram as barricadas do movimento. As ações foram convocadas, em grande parte, por meios virtuais e sem uma coordenação centralizada, envolvendo coletivos a-partidários ou multi-partidários mobilizados em torno de causas comuns, como a luta pela educação de qualidade, o acesso universal à saúde, o combate à corrupção, o alto custo de vida, a criminalidade, os altos gastos públicos com a copa do mundo e outros problemas vivenciados pela sociedade brasileira, como a homofobia e a intolerância religiosa.
As manifestações também refletem a insatisfação popular diante de inúmeros projetos de lei que circulam atualmente no congresso nacional e que colocam em sério risco direitos civis, políticos e humanos conquistados via processo constituinte, em meados da década de 1980. Com isso, a adesão foi imediata e em grande escala: em poucas horas cidadãos comuns foram mobilizados por uma rede de ativistas anônimos. O 'efeito cascata' de informações transmitidas pela internet e pela própria grande mídia foi responsável pela amplitude das manifestações.
No distrito federal, por exemplo, os manifestante fizeram um ato histórico em frente ao Congresso Nacional, subindo a rampa da esplanada entoando o hino nacional e conclamando a liberdade de expressão.
No Rio de Janeiro,enquanto milhares de pessoas vestidas de branco em sinal de paz se reuniam na Avenida Rio Branco em defesa da educação, do transporte público e da saúde de qualidade, grupos isolados ocuparam a Assembleia Legislativo do RJ e entraram em conflito direto com os policiais, encenando cenas dignas de uma rebelião popular.
Outras manifestações foram organizadas em Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza, Belém e outras cidades brasileiras, a maior parte de forma pacífica e sem maiores confrontos com a polícia. Em Belo Horizonte, no entanto, após um conflito geral com a polícia militar, que tentava impedir a passeata de se aproximar do estádio de futebol que sediará a copa do mundo, uma parte dos manifestantes tentou ocupar o Palácio de Governo e foi reprimida veementemente pela polícia militar.
Se, em um primeiro momento, os atos políticos visavam unicamente a questão do acesso ao transporte público, as manifestações subsequentes ampliaram ainda mais os propósitos do movimento, incluindo a defesa da educação pública, do acesso à saúde e o combate à corrupção e ao mau uso do dinheiro público. Inclusive, muitas ações voltara-se também contra os gastos do governo federal com a Copa do Mundo em detrimento de maiores investimentos, por exemplo, na educação e na saúde pública. A rápida adesão popular às manifestações é um sinal claro de insatisfação da sociedade com a qualidade dos serviços públicos, os altos gastos com obras públicas em geral e a corrupção em todos os setores do governo. Se existe uma palavra que possa descrever com sucesso o sentimento compartilhado pelo conjunto dos manifestantes é a palavra "indignação", que expressa claramente uma insatisfação geral com a lógica eleitoreira da política partidária e com a corrupção no poder público. A população já percebeu que os holofotes da copa do mundo funcionam como uma excelente e poderosa caixa de ressonância para os protestos da sociedade civil brasileira.
A incapacidade do governo, da grande mídia, da polícia e dos principais partidos políticos de direita e esquerda em lidar com a forma de fazer política inaugurada pelos 'novos caras pintadas' revela uma crise profunda da representatividade política nas democracias ocidentais contemporâneas, onde a lógica e a razão oculta do neoliberalismo orientam, de fato, as escolhas governamentais, em detrimento das razões sociais, ideológicas e políticas, gerando uma divergência entre as decisões tecnicistas tomadas pelos governantes e as demandas políticas colocadas pela sociedade civil. Apesar da magnitude épica dos atos políticos que acompanhamos nos últimos dias, os governantes continuam demonstrando que não estão dispostos a dialogar com os manifestantes, principalmente, no que se refere ao aumento das passagens de ônibus em São Paulo e em outras capitais brasileiras. Diante dessa postura autoritária das instituições políticas tradicionais - o que inclui também o estado de total apatia dos principais partidos políticos frente à ação de um movimento a-partidário e de caráter civil - cabe aos manifestante dar continuidade as suas ações de mobilização até que os governos resolvam retroceder e dialogar de fato em torno de suas demandas políticas. O argumento utilizado pelo prefeito de São Paulo de que não há recursos para subsidiar o preço das passagens de ônibus é uma contradição, principalmente, diante dos altos lucros da máfia do transporte público.
Os protestos realizados no Brasil, no dia 17 de junho, inauguram uma nova era na política mundial, somando-se a outras manifestações civis que ocorreram nos últimos anos, como o Movimento de ocupação de Wall Street e as manifestações políticas no norte da África, na Grécia, no oriente médio e em outros países europeus.
Viva a liberdade de expressão popular e o poder de mobilização política e de ação direta da sociedade civil organizada!
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