Antropologia
Desrazões para a desestruturação da Funai
Desrazões para a desestruturação da Funai
Mércio P. Gomes
Antropólogo e ex-presidente da Funai
Ontem foi um dia atípico sob vários aspectos. O principal foi a portaria da Funai que traz em anexo o Apostilamento dos novos cargos da reestruturação, os novos nomeados e os exonerados e dispensados. Foi uma bomba devastadora. O teor da destruição e do esfacelamento da Funai é imenso e não passa despercebido, apesar da quantidade de cargos vagos que estão dispostos à liça e disputa política nos próximos dias.
De exonerados e dispensados, só para começo de conversa, são 260 pais e mães de família deixados ao léu. Muitos deles são indígenas, alguns evidentemente exonerados por perseguição e vingança de interessados que têm acesso à cúpula da Funai. Exemplifico aqui as exonerações dos índios Guajajara João Cassimiro da Silva (mais conhecido por João Madrugada) e José Lopes, enquanto os parentes de um membro do CNPI mantiveram seus DAS. Muitos dos exonerados e dispensados são meus amigos, companheiros de trabalho, pessoas com quem convivi seja como antropólogo, seja como presidente da Funai. Cito aqui, só por lembrança, Walter Sanches, que há 25 anos trabalha com o pequeno grupo Avá-Canoeiro, que lhe deu estabilidade e uma visão do mundo mais equilibrada, dada sua situação de últimos representantes desse povo e com imensas dificuldades para sobreviver etnicamente. Mas queria citar também Afonso Alves da Cruz, o mais experiente e sábio sertanista vivo, que fez o contato com os Arara do rio Iriri (e alguém ganhou a fama por isso) e vivia modesta e humildemente como um simples chefe de posto assistindo à sobrevivência desse povo, porém respeitadíssimo pelos funcionários da Funai de Altamira. Que, aliás, está extinta. Os principais responsáveis por programas e projetos na área de arquitetura e engenharia indígena, que trabalham em Goiânia, foram exonerados.
Enfim, esses são só quatro exemplos. A lista completa está no site do DOU, seção 2, dia 2/02/2010, a partir da página 20. É arrasadora, deprimente e deplorável.
Somente doze administradores são dados como demitidos, desviando a atenção para o verdadeiro número de AERs extintas. Edgar Rodrigues, administrador de Manaus, não aparece como demitido, mas seu posto já foi tomado por outrem, na verdade, o ex-administrador de Parintins, que foi extinta. O administrador de Atalaia do Norte não é dado como demitido porque aparece como substituto do futuro coordenador (?) do Juruá, ou talvez do Alto Solimões (como vem se tentando persuadir os Tikuna a aceitá-lo). Não aparecem demitidos os administradores de Redenção, Araguaia, Primavera do Leste, Tangará da Serra, Guarapuava e Londrina, mas elas foram extintas e não substituídas. Cleso Fernandes de Moraes aparece como novo coordenador de Palmas, saindo da extinta Araguaína.
Chefes de posto exonerados são 62, mas alguns chefes de posto tinham DAS de chefes de serviço e não aparecem como tais. Assim, os postos extintos e não substituídos são em maior número.
O que serão coordenações técnicas locais? Terão mais atributos que os postos indígenas? Novos atributos lhes serão dadas? Ou a ideia é simplesmente mudar o nome? Apagar as rugas e cicatrizes do indigenismo rondoniano?
Em algumas AERs o que ficou é pior do que o terremoto do Haiti. Aqui, como na Bíblia, não ficou pedra sobre pedra e salgaram o solo para não dar mais planta. Assim parece.
Recife, João Pessoa, São Luis, Goiânia, Guarapuava, Londrina, Curitiba, Tangará da Serra, Oiapoque, Altamira, Porto Velho, Redenção, Araguaia se destacam como terra arrasada.
O Nordeste será assistido por Fortaleza, sem nenhuma tradição indigenista, por Paulo Afonso, que modestamente trabalha com índios da beira do rio São Francisco, e Maceió. 56.000 índios serão deslocados de suas bases tradicionais de apoio. O local da implantação da Coordenação Sul da Bahia ficou para ser discutido entre os Pataxó Hãhãhãe, os Pataxó de Porto Seguro e os Tupinambá. Uma coordenação vai assisti-los. Mais confusões à frente.
Os índios Guajá, que vivem como caçadores e coletores, com pouquíssima experiência de sedentarização, ficaram sem postos e sem chefes de posto. Parece uma loucura. Madeireiros, grileiros e o MST ameaçando invasões constantemente. Estarrecido, estou contando que seja criada uma frente de proteção etnoambiental para eles. Aliás, que nominho mais esdrúxulo este que cunharam para defender e assistir aos povos autônomos e recém-contatados.
Que dizer dos Assurini, Parakanã, Araueté e Arara do Iriri, todos contatados na década de 1980, um ou outro falando algum português, vivendo no município que em breve receberá 96.000 peões e suas famílias para trabalhar na Usina Belo Monte, cuja licença foi dada intempestivamente pela Funai há três meses?
É para brincar com fogo, com vidas de índios, ou aguarda-se a presença de Ongs salvadoras por aí?
A situação xavante é a mais esquisita possível. Criaram uma coordenação regional na cidadezinha de Ribeirão Cascalheira, que antes servia aos Xavante que retomaram parte de suas terras em Maraiwatsede. Os Xavante de Maraiwatsede estão crentes que essa coordenação é deles. Aos líderes Xavante de Pimentel Barbosa e Areões prometeram que um deles seria o coordenador. Ribeirão Cascalheira também vai exercer assistência sobre os Karajá e Tapirapé da extinta AER Araguaia. É de se esperar muito conflito nisso tudo.
As extinções de Campinápolis, Norotã, Xavantina e Primavera do Leste ? todas agora sob a dependência de Barra do Garças ? são ossos duros de roer. Alguém está planejando alguma coisa contra os Xavante. Talvez pretenda criar mais disputas entre eles para ver se os têm em maior controle. Será? Apenas um conhecido ?xavantólogo? está a favor dessa patacoada que, evidentemente, só provocará disputas e conflitos.
Os Kayapó ficaram sem Redenção, mas, em compensação ganharam Belo Monte. Parece que aceitaram a coisa passivamente. Ou não? Só o bom futuro dirá.
A criação de duas coordenações regionais para os índios Guarani do litoral sul e sudeste, com evidente interesse de trabalho de uma certa Ong neoliberal, é descompensada pela extinção de Bauru, Curitiba, Londrina e Guarapuava, que assistia aos 25.000 Kaingang, Guarani, Terena e Xetá.
Por tudo isso, a coisa ficou feia. A Funai em Brasília segue como nos últimos tempos. Cada um guardado em sua redoma. Muitos pensando seriamente em sair. Outros buscando soluções e contornos diante desses fatos.
Ao invés de chegar mais próximo dos índios, o fim de 46 AERs e a extinção de 62 postos indígenas (digamos que as coordenações técnicas locais sejam substitutos à altura da tradição de um posto) deixam os índios mais distantes. Cargos de DAS ficam nas coordenações regionais e a maioria inflacionando a sede do órgão. Bom para os amigos da cúpula.
2009 já foi o pior ano para o indigenismo brasileiro, desde o tempo dos militares. Foi aí que ficou determinado pelo STF as quatro principais condicionantes que transformaram o processo de demarcações de terras indígenas numa impossibilidade jurídica. É o legado do indigenismo que se pratica atualmente, com toda sua histrionice neoliberal.
2010 nasce sob o signo da insensatez administrativa, mas também do protesto indígena. Uma avalanche de protesto chegou a Brasília e chacoalhou as bases desse indigenismo neoliberal. Chacoalhou mas não derrubou. Continua vivo, cambaleante, desmoralizado, mas abscôndito nos palácios, para a surpresa e a vergonha dos povos indígenas brasileiros. E dos indigenistas que ainda existem pelos sete cantos do nosso país.
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