Herança maldita é pior do que decreto de reestruturação
Antropologia

Herança maldita é pior do que decreto de reestruturação


A pior herança, o mais cruel legado  -- pior ainda do que a proposta de um novo Estatuto do Índio (sobre o qual, durante as discussões regionais, houve fortes resistências indígenas) e o esdrúxulo decreto de reestruturação (o qual, mais cedo ou mais tarde, apesar das manipulações  e sofismas que vêm sendo atirados sobre os índios, será revogado) -- que a direção atual da Funai vai deixar para o futuro dos povos indígenas é o beco sem saída, o impasse, o empate, a obstrução na demarcação de terras indígenas.

Dia a dia, a cada ação realizada pela Funai, até ações realizadas há poucos anos, até a atos de homologação presidencial, surgem resistências avassaladoras da parte de terceiros interessados. Antes havia resistência a demarcação de terras indígenas, sem dúvida. Os fazendeiros pinotavam, reclamavam dos valores, botavam capangas, tentavam arrendar as terras perdidas, etc. Porém, hoje não precisam fazer nada disso. A resistência se dá no papel, por meio de advogados, e vem respaldada por uma decisão jurídica do mais alto nível jurídico, de dimensão arrasadora.

São as 19 condicionantes e mais a definição do marco temporal do que consiste "ocupação tradicional".

Essas condicionantes e a terrível definição desse marco temporal já foram analisados anteriormente nesse Blog. Mais recentemente elas foram comentadas na postagem da socióloga Kaingang, Azelene Kring. Elas foram elaboradas no bojo do voto favorável à confirmação da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol proferido pelo Supremo Tribunal Federal no dia 19 de março do horrível ano para o indigenismo brasileiro de 2009.

O tema de demarcação de terras indígenas ressurge nesse momento porque aí estão mais duas concessões de liminar exaradas pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, favoráveis aos terceiros interessados, os fazendeiros, com base nessas condicionantes.

A data fatídica desse marco temporal é nada mais nada menos que o dia da promulgação da Constituição Brasileira, 5 de outubro de 1988. Quer dizer, conforme já exarado em duas ou três concessões de liminar pelo presidente do STF, Gilmar Mendes (a ver na matéria abaixo, no Estado de São Paulo), se um grupo indígena não estiver presente e ocupando em determinada terra reconhecida por uma equipe da Funai, e reafirmada por portaria pelo Ministro da Justiça, como de ocupação tradicional, naquela data, esta requerida terra não será formalmente considerada de ocupação tradicional. Portanto, não poderá ser legitimada como indígena para efeitos de demarcação nos termos do Art. 231 da Constituição Federal.

É mole?

Com isso, esfumaçaram-se as possibilidades da Funai fazer jus ao propósito de recuperar terras indígenas perdidas em tempos atrás, seja por esbulho, seja por transferência forçada pelo órgão indigenista, seja por mudança temporária ou duradoura.

Mas, em que isso cabe culpa à atual direção da Funai?

Bem, o caso é que todo o variado grupo de Ongs e associações indigenistas que compõe o pessoal que se aboletou na direção da Funai é o mesmo grupo que vinha há anos argumentando que o Art. 231, que trata do reconhecimento dos povos indígenas e do direito sobre as terras que ocupam, era simplesmente auto-aplicável. Que bastava exercê-lo, usá-lo e pronto.

Para os analistas jurídicos e antropólogos desse grupo, o artigo era simples e cristalino, não cabia interpretações. Ou melhor, as interpretações caberiam simplesmente a quem fosse indicado para reconhecer os limites de uma terra indígena ocupada. Os demais seriam sempre interpretações falsas. Que eles ganhariam todas as liças na justiça.

Desse modo simplista de interpretar a questão indígena brasileira, retiraram da questão indígena toda a carga histórica altamente convolucionada, cheia de altos e baixos, cheia de preconceitos, com uns poucos laivos de simpatia, que compõe de fato, na realidade, o relacionamento entre povos indígenas e a sociedade em geral e o Estado brasileiro. E assim forçaram a barra, sem prestar atenção nos sinais que vinham de todos os quadrantes do espectro político brasileiro. Para demarcar uma terra indígena, apelavam para a opinião pública internacional, para a pressão das Ongs, para a OEA, até para o Papa, como se fosse no tempo do final da ditadura militar, quando, nesses últimos anos, o Brasil exatamente vinha se elevando acima dessa opinião pública e chamando para si os seus problemas. Vejam que o voto do mais esquerdista dos ministros do STF, Carlos Ayres Britto, ex-membro do PT, e que estabelece o marco temporal, é também quem se manifesta contra a Declaração Universal dos Direitos Indígenas, promulgada pela ONU em 2008, e censura veementemente a interferência do Exterior.

Os condicionantes do Supremo Tribunal Federal foram uma reação desmesurada ao ambiente criado por esse grupo e suas ações na Funai. Reação horrível, uma tacada, um tiro de canhão sobre uma alvo desprotegido. E cada vem mais desprotegido.

Os "velhos" e surrados funcionários da Funai, dos quadros de engenheiros, economistas, topógrafos e indigenistas, os humildes motoristas que acompanham as equipes, as modestas enfermeiras que ainda trabalham na Funai, as assistentes sociais, os que servem cafezinho pelas sedes da Funai -- todos, enfim, em suas honestas maneiras de viver e trabalhar com o drama indígena -- bem como antropólogos da corrente rondoniana e mesmo uns poucos neoliberais  -- todos que, cada um ao seu modo, foram responsáveis pela demarcação de tantas terras indígenas -- sabiam e sabem que demarcar uma terra indígena é mais que uma técnica de seguir normas, é um arte do indigenismo brasileiro. A cada terra indígena, a cada situação -- sua própria ação. Tentar atropelar um processo, passar por cima das circunstâncias sociais e políticas dadas, enredar-se na vontade narcísica -- são gestos desastrosos e resultam em consequências absolutamente nefastas. Pois bem, logo que entrou como ministro da Justiça, o Sr. Tarso Genro quis limpar sua mesa, mostrar uma atitude corajosa, destemida, e caiu no narcisismo barato: de uma ou duas tacadas emitiu umas 10 a 15 portarias de demarcação. Efeito: todas passaram a ficar sob juízo de imediato. E, um ano depois, surge o voto desastroso do STF.

Coincidência? Falta de sorte dessa turma?

Não. Simplesmente terrível erro estratégico, incompetência política, inciência, ignorância da história brasileira, despreparo para exercer liderança na questão indígena brasileira.

O desastre agora é fatal. A reversão desse processo é quase impossível. Só com o tempo poderá o STF amenizar a força de sua decisão. Só com muita negociação indígena. Ficou o problema na mão dos índios, porque esse grupo vai tomar outro rumo quando o peso de suas consciências cobrar efeito.

Eis o legado que a atual direção da Funai e sua tropa de mandões aloprados deixam ao indigenismo brasileiro. O decreto de reestruturação vai ser revogado, mudado radicalmente, não tenho a mínima dúvida. Essa direção atual vai passar também.

Mas a mudança no processo de demarcação de terras indígena é a herança maldita que esse grupo deixa aos povos indígenas do Brasil.


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STF susta demarcações de reservas


Mendes dá liminar a donos de fazendas que alegam ter titularidade de terras desde anos 1920

Mariângela Gallucci, O ESTADO DE SÃO PAULO



O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, suspendeu ontem partes consideráveis das demarcações de duas terras indígenas assinadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos últimos dias de 2009. A área mais atingida é a reserva Arroio-Korá, em Mato Grosso do Sul. A suspensão engloba mais de 90% da terra.

Os donos das Fazendas Polegar, São Judas Tadeu, Porto Domingos e Potreiro-Corá, localizadas em Mato Grosso do Sul, e Topografia, em Roraima, alegaram ter a titularidade do imóvel há muito tempo e, por causa do decreto, havia risco de as propriedades serem transferidas nos próximos dias para a União.

As decisões de Mendes são liminares, têm conteúdo bastante semelhante e se basearam no julgamento de março do ano passado no qual o STF reconheceu a validade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e ordenou a saída dos não-índios da área.

Mendes afirmou que são plausíveis os argumentos dos proprietários das fazendas. Segundo ele, documentos juntados às ações atestam que os registros dos imóveis são das décadas de 1920 e 1940. Ele observou, portanto, que são "muito" anteriores a 5 de outubro de 1988, quando ocorreu a promulgação da atual Constituição. Essa data foi um marco fixado pelo STF no julgamento da Raposa Serra do Sol. Conforme a decisão daquele caso, deve ser considerada terra indígena a área onde havia índio na época da promulgação da Constituição.

Localizada no município de Paranhos (MS), a Fazenda Polegar foi incluída na demarcação da área Arroio-Korá. Segundo os proprietários, a área foi adquirida em 9 de agosto de 1923 por seus avós. A área Arroio-Korá tem 7.175 hectares dos quais 1.573 hectares pertencem aos donos da Polegar. Já a reserva Anaro, em Amajari, Roraima, tem 30.473 hectares, dos quais 1.500 hectares são da Fazenda Topografia.




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