Crise da Funai completa 60 dias
Antropologia

Crise da Funai completa 60 dias



60 dias de crise na Funai

Ontem, 28 de fevereiro, completaram-se dois meses que a Funai passa por uma crise inédita ?nunca dantes vista na história desse país--, desgastante e perigosa para a política indigenista brasileira, tanto pelo longo tempo de duração quanto pelas consequências que dela advirão.

O mais surpreendente é que o governo democrático e popular do Pres. Lula parece estar indiferente à crise, ou ao menos porta-se com uma atitude de sobranceria, de espera calculada, para ver se a crise passa, apesar dos inúmeros e intensos protestos indígenas e indigenistas que até agora se fizeram presentes no panorama político-cultural do indigenismo brasileiro. Nem bola dá às advertências feitas por autoridades como lideranças políticas, inclusive do próprio PT, governadores de estado, bispos e arcebispos, antropólogos e indigenistas, e, acima de tudo, lideranças indígenas de raiz.

O que está faltando ?em termos de protestos, advertências, sugestões? vindas de todos os quadrantes políticos brasileiros, para que o governo Lula se dê conta do que está acontecendo e das consequências culturais e políticos para os povos indígenas ?e tome a iniciativa de resolver a questão?

Mais protestos serão necessários? Arriscar o bem-estar de pessoas? Levar os índios ao desespero?

O que o governo Lula tem que se dar conta é que não bastam as explicações capciosas que vêm sendo dadas aos índios pelo Brasil a fora e, em especial, em Brasília, na sede do Ministério da Justiça. Por toda parte, as desculpas, justificativas e promessas sobre o caráter desse decreto têm diminuído o ímpeto original dos protestos indígenas, sem dúvida, porém, um dia, essa falta de escrúpulo democrático em relatar o verdadeiro caráter desse decreto cairá por terra. Talvez de um modo inesperado. Talvez pelo desgaste permanente que se instala no órgão indigenista, desconstituindo-o de seus propósitos fundamentais.

O legado da gestão atual da Funai, que completa três anos ao fim deste mês de março, é impressionantemente negativo.

Além do número ínfimo de terras demarcadas (em 2008 nenhuma terra indígena foi demarcada e homologada, pela primeira vez desde 1970), essa gestão e seus aliados provocaram o Supremo Tribunal Federal a elaborar uma série de restrições a demarcação de terras indígenas que inviabilizaram o propósito de demarcar terras indígenas ao menos como compensação por perdas históricas de diversos povos indígenas, como os Guarani, os Terena, os Kaingang, os Pataxó e tantos outros mais.

A política indigenista foi claramente mudada, e para pior, por conta das atitudes aparvalhoadas do pessoal que toma conta da Funai. A direção atual da Funai, por sua falta de preparo intelectual e político, atiçou o surgimento de um anti-indigenismo feroz, como não se via desde os tempos de avanços econômicos e coloniais sobre terras indígenas no Paraná, Santa Catarina, sul da Bahia e oeste de São Paulo, do último quartel do século XIX até 1910,  quando o Marechal Rondon estabeleceu as bases políticas e ideológicas do Serviço de Proteção aos Índios.

A direção atual e seus aliados criaram e alimentaram um ilusionismo de participação política indígena que decepciona e humilha a todos os índios, exceto aqueles que vivem exclusivamente de atividades políticas, sem relação e vivência com seus povos. A Comissão Nacional de Política Indígena, por exemplo, que foi criada pelo Pres. Lula durante minha administração, e que teria como membros participantes líderes indígenas votados e indicados pela grande Conferência Nacional dos Povos Indígenas, em abril de 2006, terminou recebendo indígenas indicados pelas associações indígenas, então tuteladas pelas Ongs (não sabemos se continuam tuteladas ou não pelas mesmas Ongs, depois da crise atual), cujo papel principal terminou sendo de coadjuvar as ações anti-indigenistas da atual direção da Funai.

A CNPI deu aval para um projeto de mudança do Estatuto do Índio, que, em primeiro lugar, foi rejeitado por grande parte dos povos indígenas e, em segundo lugar, que, se passar no Congresso Nacional, fará a festa das empresas interessadas nas terras indígenas, com o mínimo de participação indígena.

A CNPI deu aval para a edição deste famigerado decreto de reestruturação da Funai, mesmo que diversos representantes indígenas tenham professado publicamente que de nada teriam sabido do verdadeiro teor do decreto. O que deixou o decreto ainda em pior condição moral. Isto é, a CNPI foi enganada abertamente e seus atuais membros não fizeram nada para protestar em conjunto contra essa deslealdade indigenista e humana. Como resultado fica para a história que uma comissão nacional composta por índios e membros do governo foi ludibriada por um grupo que quer instalar uma política indigenista malfazeja para os próprios índios.

A atual direção da Funai deu anuência para a construção da Usina Belo Monte após pouquíssima discussão com os próprios índios que serão afetados, contrariando o parecer de seus técnicos, quando antes, ao pé do ouvido do cacique Raoni, e para as Ongs e índios da CNPI, prometia que não daria tal permissão. Além do mais, nessa anuência não fez quaisquer ressalvas substantivas de compensações, ressarcimentos ou participações, deixando os índios que lá vivem à mercê das avassaladoras condições sociais e econômicas que lhes cairão sobre suas cabeças e suas terras. Ao contrário de dar a esses povos indígenas maior proteção diante do cataclisma que desponta no horizonte, extinguiu a AER Altamira, o pequeno abrigo que os índios sempre tiveram em sua defesa. No seu lugar, promete instalar, depois da pressão feita pelos índios da região, um setor de proteção etno-ambiental, que estava antes destinado aos chamados índios isolados, e que como setor da Funai nunca exerceu política administrativa, sob a Coordenação Geral de Índios Isolados, tutelada por uma das Ongs que dominam a direção da Funai. Uma brincadeira administrativa irresponsável e perigosa.

Por fim, passados dois meses desde a publicação do decreto presidencial, a atual direção da Funai permanece aparentemente inabalada pelos protestos os mais veementes que já se fizeram presentes na história da Funai. Continua esse grupo que tomou a Funai desfiando um rosário de justificativas e promessas sobre este decreto de reestruturação do órgão. Tais promessas, como não poderão ser cumpridas, e que os próprios índios ao final saberão disso, haverão de ser cobradas dia a dia, num processo de desgaste contínuo para o órgão indigenista e para a política indigenista do Estado brasileiro. Perde a Funai e perde a política indigenista brasileira em suas honras e na consolidação de suas histórias. Os membros da atual direção da Funai sairão um dia da Funai, não restam dúvidas, porém deixarão um rastro de calamidades que serão difíceis de serem resolvidas.

Há ciência por trás disso tudo? Há algum tipo de inteligência política comandando as ações de justificativas e engabelações que vêm sendo perpetradas Brasil a fora? Há um propósito superior de formação de uma política indigenista avançada que não nos é dado conhecer, por misteriosa que seja?

Ou tudo não passa de tentativas para se manter no poder? Arreglos políticos com intenções inconfessadas?

Por que o Pres. Lula não dá objetividade à sua promessa aos tantos índios que com ele estiveram em Goiânia, em Recife, no 4º Congresso do PT? Será que o presidente acha que a atitude de esperar um pouco mais para ver se as coisas se ajeitam é a melhor solução?

O certo é que esse decreto e a atual direção da Funai condenam a história da política indigenista brasileira ao seu pior momento. Logo agora, neste ano de 2010, que essa política oficial está fazendo 100 anos.

O Marechal Rondon deve estar dando voltas em seu túmulo. Orlando Villas-Boas e Chico Meirelles devem estar se contorcendo de angústia. As portas da Funai estão ostensivamente tomadas pela Guarda Nacional, que lá fica com seu carrão estacionado no pátio de entrada e onde os guardas terceirizados checam as identidades dos índios que lá querem entrar e exigem que declarem a que vêm à sede do órgão que devia dar-lhe assistência e proteção e que, até agora, era visto como a própria Casa do Índio.

Até quando isso continuará? Como reverter esse processo nefasto?



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