A Rio+20 e a Cúpula dos Povos
Antropologia

A Rio+20 e a Cúpula dos Povos


Em 1992, quando foi realizado a "Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento", conhecida popularmente como "Eco-92", as noções de 'desenvolvimento sustentável' e 'crise climática', apesar de estarem sob debate desde a década de 1970, eram conhecidas por um seleto grupo de 'especialistas' e 'ativistas' ligados ao movimento ambientalista. Na época, ainda havia uma série de controvérsias científicas em torno da magnitude e das razões do aquecimento global, gerando incerteza e ao mesmo tempo constituindo um espaço de agenciamento governamental dos saberes dos cientistas na luta política e nas batalhas diplomáticas. Apesar das dificuldades, no entanto, foram firmados documentos internacionais importantes, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e a Agenda 21, abordando assuntos como a regulamentação do acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais, mudança climática, recursos hídricos e segurança alimentar.

Duas décadas depois, o cenário político internacional mudou consideravelmente e a temática do 'desenvolvimento sustentável' se tornou popular entre amplos setores da sociedade civil, dando origem a uma rede de extensão global que envolve um conjunto heterogêneo de organizações civis e governamentais mobilizadas em torno de uma diversidade de projetos e iniciativas. A ideia de 'crise ambiental' foi disseminada amplamente pelos meios de comunicação, através de uma abordagem sensacionalista das catástrofes climáticas. A 'economia verde', por outro lado, foi transformada no novo eldorado do capitalismo internacional com a organização de todo um mercado em torno dessa nova modalidade econômica. Essas 'caixas-pretas' são constantemente abertas, reformuladas, desconstruídas, reformuladas e fechadas novamente, voltando logo depois a reproduzir o mesmo movimento de tradução. Enquanto as controvérsias circulam, elas também se transformam. Independentemente do posicionamento político diante das disputas, havia certa expectativa mais ou menos compartilhada que o evento resultaria na fabricação de novos dispositivos governamentais.  

Mas o resultado das discussões entre diplomatas, burocratas e líderes governamentais, ficou aquém do esperado. O documento é vago, não trata de questões polêmicas e transfere para o futuro o estabelecimento de acordos mais contundentes em torno de compromissos políticos efetivos com o 'desenvolvimento sustentável'. Mais preocupados em calcular com precisão o 'valor econômico' da biodiversidade, os governos buscam mercantilizar e contabilizar o meio ambiente como uma fonte de lucro e não de vida. Com isso, a Rio+20 tornou-se uma espécie de 'mega-show pirotécnico', com muito alarde mas sem efetivar nada de concreto. Preocupados em calcular o preço final da destruição em massa, a definição de 'quem vai pagar a conta' acabou assumindo uma prioridade diante do estabelecimento de metas e compromissos em torno de iniciativas governamentais com efeito prático na vida das pessoas. Nesse processo, a vida é mercantilizada e esquadrinhada na forma de tabelas, gráficos, índices estatísticos e cálculos de contabilidade. Toda uma 'economia do risco' e da 'probabilidade' surge daí, com sua conversão de pessoas em números e de sonhos em possibilidades matemáticas. Masentre a teoria e a prática existe todo um oceano a ser navegado, entre o mapa e a vida existe todo um 'mundo' a ser desdobrado... Como nos diz Bateson, 'o mapa não é o território'...

Salva-se, como sempre, o evento paralelo, organizado por diferentes setores da sociedade civil, que buscam pressionar os governantes a assumir a sua responsabilidade diante da crise ambiental. A 'Cúpula dos Povos' reflete a angústia da sociedade diante do imobilismo dos representantes políticos. Pena que esse movimento de crítica à mercantilização da vida humana e não humana não consiga romper com os muros do Rio Centro. Entre os governos reunidos nas salas climatizadas e o povo que ocupa as ruas da cidade, organizando-se em coletivos mobilizados em torno do valor da vida, existe uma distância quase intransponível entre dois mundos (ou ontologias) completamente diferentes: de um lado, o 'mundo da vida'; do outro, o 'mundo da economia política'. A linguagem conceitual utilizada pelos burocratas - baseada na noção de 'população' como um objeto governamental e na lógica da soberania política e da competição internacional - não corresponde a linguagem dos povos, voltada para a manutenção dos meios fundamentais para a continuidade da vida na terra. Entre esses dois universos conceituais, existe todo um caminho repleto de obstáculos a ser percorrido e a tarefa exige esforços de ambas as partes. 


E as 'vozes subalternas', para usar uma expressão cunhada por Foucault, estão disseminadas por toda parte, ocupando espaços inusitados, convertendo o sentimento de angústia em um grito de luta, que ressoa também nos gabinetes governamentais. O povo nas ruas exige atitude, compromisso e ação concreta dos representantes políticos, que insistem em colocar a contabilidade acima de todos os demais saberes. O que vemos claramente a partir desse 'evento crítico' é a explicitação de uma crise da democracia ocidental, marcada por uma falência dos dispositivos de 'representatividade', a partir do estabelecimento de uma distância entre o que determina a vontade popular e o que estabelece a decisão dos governantes. Enquanto os países desenvolvidos e em desenvolvimento investem bilhões na busca de uma solução para a crise financeira internacional, transferindo grande parte de suas economias para os bancos e fundos financeiros, recusam-se a fazer o mesmo em relação ao meio ambiente e a vida.  


Talvez estejamos próximos de repetir na vida a cena retratada no livro de Saramago, "Ensaio sobre a Lucidez", quando os cidadãos resolvem, inesperadamente, dar um basta no 'circo democrático' votando em branco nas eleições. 



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