Antropologia
Termina o Fórum Social Mundial e o ministro Tarso Genro diz que se demite se for coibido nas questões indígenas
Hoje é o último dia do Fórum Social Mundial. Jornalistas, cientistas sociais e analistas em geral vêm apresentando suas visões do que ocorreu esse ano, em Belém, nessa 9ª edição do FSM.
No início do Fórum, muitos achavam que os temas propostos para discussão iriam ser desviados pela crise econômica mundial, que está a exigir de todos um posicionamento que levará a graves contradições com a ideia de um novo mundo. Até o deputado Fernando Gabeira, em artigo na
Folha de São Paulo desta semana duvidou dos propósitos desse fórum, especialmente da ideia de criar um mundo alternativo ao que temos. Segundo Gabeira, ele já ouvira isso antes, nos tempos de luta contra a ditadura e antes do fim do comunismo soviético, e hoje acredita que aquilo pelo qual podemos lutar é tão-somente "um mundo melhor", não "um mundo alternativo".
O FSM carrega em si a ideia de um mundo alternativo. Diz que é contra o sistema capitalista e contra as nações dominantes. Entretanto, considerando as discussões, o que verdadeiramente há de alternativo nesse FSM é a cultura indígena. Mas aí, só eles mesmos podem viver suas culturas. Os demais participantes do Fórum podem apenas admirar esse mundo e tentar emular alguns dos seus aspectos. A questão, porém, é que muitos indígenas querem viver o mundo da cultura ocidental, e aí vêm os problemas. Como contemporizar as duas culturas? Eis o nosso maior desafio.
O FSM atraiu este ano um número muito grande de indígenas brasileiros. Talvez uns 1.000. Diversas organizações financiaram a vinda desses representantes indígenas. Vieram desde o Rio Grande do Sul até o Acre. Muitos da região amazônica vieram de barco descendo o grande rio, numa viagem promovida pela Coiab e por Ongs internacionais; outros vieram de avião e de ônibus.
A presença indígena no FSM foi maciça e impressionante. Os participantes estrangeiros não deixaram de se admirar com suas danças e cânticos, suas indumentárias, seus cocares e suas pinturas corporais. Os Kayapó levaram uma delegação de mais de 100 índios, e 100 índios Kayapó fazem uma performance que se destaca no meio de outras performances.
A organização das atividades dos índios neste FSM ficou a cargo da Coiab. O discurso que pretendia fazer e o tom que planejava dar era de protestos contra o capitalismo, o desmatamento, a construção de hidrelétricas e estradas, mas sem atingir o governo. Porém, pressionada pela presença dos Kayapó e de outras lideranças que não se submetem ao discurso de contemporização da Coiab, esta teve que agitar as reuniões com autoridades e com outros participantes do FSM. Em certo momento, um dos líderes da Coiab, Marcos Apurinã, o mais visível no FSM, disse que o presidente Lula havia abandonado os índios e que tinha se recusado a recebê-los na sua passagem de dois dias em Belém. Aí foram convocados o ministro do Meio Ambiente e depois o Ministro da Justiça para assegurar aos índios o apoio do governo. Depois disso Apurinã contemporizou e disse que segue apoiando o governo Lula.
Aliás, a imprensa notou que o governo enviou uma enorme delegação de funcionários de alto e médio escalões. Mais de 200. Parece que a ideia era mostrar que o governo Lula continua a merecer o apoio dos movimentos sociais, contrariamente ao que vem falando o MST, por exemplo, que diz que o governo Lula não está fazendo a reforma agrária.
Além das passeatas e manifestações de danças e cânticos, os índios participaram de diversas reuniões e debates. Um dos mais caóticos foi com o pessoal do Ministério de Minas e Energia, que estava defendendo a construção das hidrelétricas no rio Tocantins, no rio Xingu e no rio São Francisco. O Kayapó Yreô se exasperou tanto com os argumentos apresentados que foi à mesa de discussão e quebrou os slides que o pessoal das hidrelétricas estava apresentando. Por sua vez, os índios do Vale do Javari fizeram uma grave denúncia de que estão sofrendo de hepatite crônica e muitos morreram sem que a Funasa tivesse encontrado uma solução.
Em determinado a situação ficou muito tensa no meio dos índios. Eles estavam muito aborrecidos com algumas autoridades do governo e até se recusaram a receber o presidente da FUNAI. Na quinta-feira, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, esteve num debate e prometeu a liberação de uma verba de 9 milhões de reais, este ano, para projetos econômicos sustentáveis para os povos indígenas. Esta verba, variando de valor de ano a ano, vem sendo aplicada desde o início do governo Lula. Passa ao largo da FUNAI e é gerenciada no MMA, junto com a comissão de índios, para doar a povos indígenas que fazem projetos que, ao final, não produzem nenhum resultado consistente em suas comunidades. Muito menos sustentáveis.
Ontem, sábado, o ministro da Justiça, Tarso Genro, em fala marcada por pleonasmos e promessas, chegou ao extremo de dizer que se demitiria do cargo se as ações que ele declarou estar promovendo não fossem acatadas pelo governo do presidente Lula. Disse isso depois de ouvir por duas horas as falas dos representantes indígenas que insistiam em mostrar que o governo Lula tem sido negligente para com eles. Em suas próprias palavras, Genro declarou, segundo o jornal eletrônico da UOL:
"Se não pudermos continuar defendendo as questões indígenas, se formos coibidos de alguma forma, eu saio do ministério", diz Tarso Genro. "Não é bravata".
Tarso Genro tem dado declarações esdrúxulas por aí afora. Esta vai de barato para sua coleção de bravatas desmentidas como não bravatas. No mesmo tom, ao fazer uma avaliação dos últimos 23 meses em que é ministro da Justiça, Genro disse:
"Nos últimos dois anos, elaboramos 271 portarias declaratórias [de demarcação de terras], fizemos 10 homologações [de reservas] e temos hoje 90 processos [de demarcação] em curso".
Só posso acreditar que essa aspas tenham sido engano da jornalista Karina Yamamoto, da revista eletrônica UOL. Realmente, a única informação verdadeira nelas é que foram homologadas 10 terras indígenas (não "reservas"), e mesmo estas foram todas frutos do trabalho do ministro anterior, Márcio Thomas Bastos, e do ex-presidente da FUNAI, este que vos escreve. Por sua vez, as 271 portarias declaratórias do atual ministro da Justiça não chegam a 20, das quais 16 delas foram embargadas pelos terceiros interessados e pelos governos dos estados do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina e Rondônia, e não tiveram prosseguimento. Na verdade, quase nenhuma terra está sendo demarcada. Já dizer que há 90 processos de demarcação é espantoso.
Por sua vez, o presidente atual da FUNAI falou que este ano o Estatuto do Índio iria ser mudado por um novo que estaria sendo discutido através da CNPI. Segundo ele, ?Todo o movimento indígena reivindica essa atualização depois de tantos anos? (Agência Pará). Ora, pode ser que esse movimento indígena esteja a favor, mas não os índios que vivem em suas terras e conhecem as consequências que poderão advir da mudança do Estatuto do Índio. Aliás, essa foi uma das maiores reivindicações que os índios tiveram em sua passagem pelo Fórum Social Mundial: a não mudança do Estatuto do Índio.
Por tudo isso, sinto um certo constrangimento pelo que o ministro Tarso Genro está passando no Ministério da Justiça. Ele não merece.
Assim, o FSM termina com o sentido de déjà-vu. Há uma crise de liderança que se repete a cada encontro. A saída é sempre a busca de outro ambiente para a reunião do próximo ano.
Deste encontro em Belém fica a lembrança da presença dos índios, suas vozes determinadas em meio ao caos incompreensível das outras reivindicações.
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