Antropologia
O que promete este agosto para a questão indígena?
Agosto, mês de desgosto. Mas quase nunca para os povos indígenas do Brasil. Agosto é o mês que coroa o verão, época sem chuvas, mas quando ainda há abundância de legumes e frutos da agricultura, quando a caça se concentra em lagoas secantes e os rios estão baixando suas águas dando ocasião para boas pescarias. Momento de festas e rituais em quase todo os povos. O preparo da roçagem, broca e derrubada da mata para roças já está terminado e espera-se a secagem para a queima em setembro-outubro.
Porém este agosto é preocupante para os povos indígenas, especialmente os do Mato Grosso do Sul e os de Roraima.
Dia 27, uma quarta-feira, o STF vai pôr em votação algumas ações impetradas pelo estado de Roraima contra a homologação de Raposa Serra do Sol. Está todo mundo ansiosíssimo sobre o que sairá do STF. Basta ver ao lado o placar da enquete sobre esse assunto. Quase meio-a-meio entre os que acreditam que o STF vai manter e os que acreditam que ela vai mandar refazer a homologação de Raposa Serra do Sol.
Hoje mesmo está havendo no Ministério da Justiça um debate com alguns antropólogos, o jurista Dalmo Dallari e o próprio governador do estado de Roraima sobre Raposa Serra do Sol. Debate para tentar influenciar a decisão do ministro Ayres Britto, que, segundo ele mesmo, a decisão e o voto já foram feitas.
No Mato Grosso do Sul teremos celeumas e conflitos nessa e nas próximas semanas. A direção atual da Funai partiu com tudo para tentar achar um caminho de compensação e recuperação de terras indígenas naquele estado. Criou seis grupos de trabalho, sob a coordenação do antropólogo Rubens Almeida, para partir para a identificação de 36 novas terras indígenas dos Guarani. Segundo o coordenador, as terras indígenas dos Guarani vão ser aumentadas entre 500.000 e 1.000.000 de hectares. Os fazendeiros estão bufando de ódio, de medo e de vontade de vingança. Estão aprontando todos os armamentos possíveis. Advogados, políticos, consultores, a mão-de-obra especializada de capangas, a própria força bruta dos fazendeiros.
Dois artigos abaixo falam do problema que está se criando no Mato Grosso do Sul. O primeiro é um artigo publicado no
Globo e no
Estado de São Paulo pelo colunista e filósofo de direita Denis Rosenfield, que agora é consultor da Famasul, a associação de criadores de gado do Mato Grosso do Sul. Nele o filósofo tece um conjunto de argumentos pífios sobre a soberania do estado de Mato Grosso do Sul, sobre o direito de propriedade e sobre a temporalidade da frase constitucional "ocupação permanente".
É um artigo muito vazio, o que me surpreende. Na verdade, Rosenfield não entende nada da história indígena do Brasil e tampouco dos Guarani e sua presença no Mato Grosso do Sul. Não adiciona nada para os fazendeiros, a não ser a retórica desacreditada e a publicidade que eles querem. É preciso notar que essa celeuma ainda não alcançou os jornais nacionais, e sim, só os jornais de Mato Grosso do Sul e a Agência Brasil.
A segunda matéria é uma disputa verbal entre um fazendeiro e um procurador da República sobre o que se entende por "ocupação permanente" de terras indígenas. Isto é o que vai definir a situação fundiária indígena em Mato Grosso do Sul e no resto do país. O STF vai ter que declarar sua interpretação sobre esse tema e como a Funai deve usar esse conceito. Quais os critérios que avalizam a ocupação permanente, sobretudo no caso de índios que foram retirados das terras ou delas saíram por razões diversas.
De todo modo, as opiniões do fazendeiro e do procurador são parciais e incapazes de convencer o STF. Dizer que no Nordeste não se ampliam terras indígenas porque os índios foram dizimados é uma afronta àqueles que estão aí procurando ampliar suas terras. E defender os fazendeiros porque eles investiram suas economias em suas propriedades não pode valer se essas propriedades forem ilegais. De qualquer modo, é preciso que a Funai se valha de pessoas com estatura jurídica, como Dalmo Dallari ou Aristides Junqueira, para emitirem pareceres sobre esse tema e que venham a ajudar a Funai e a AGU a fazer as argumentações que serão necessárias num futuro próximo.
____________________________________________
Mato Grosso do Sul
O GLOBO, Denis Lerrer Rosenfield
Parece não haver mais limites para a ação da FUNAI de demarcação de terras indígenas, como se o país fosse um imenso território virgem suscetível de qualquer reconfiguração territorial. Um Estado federativo passaria a se reger por portarias e atos administrativos do Poder Executivo que criariam "nações" que, doravante, conviveriam com "outros estados".
Em 14 de julho deste ano, a FUNAI editou 6 portarias visando à demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul. As portarias abrangem 26 municípios, dizendo respeito a uma área potencial total de 12 milhões de hectares, correspondendo aproximadamente a um terço do território estadual.
Em sua redação, as portarias não visam especificamente a uma propriedade ou área determinada, mas têm tal abrangência que qualquer propriedade poderia vir a ser atingida. Há uma ameaça real que paira sobre toda essa região, criando uma insegurança jurídica, prejudicial para todo o estado de Mato Grosso do Sul.
Observe-se que se trata de uma área extremamente fértil, povoada, com produtores lá instalados há décadas e com títulos de propriedade.
De repente, aquilo que se considerava como uma situação estável se vê subitamente em perigo graças a atos administrativos da FUNAI. Ressaltese que uma portaria, que é um ato do Poder Executivo, passa a legislar sobre o direito de propriedade e o pacto federativo, sem que o Poder Legislativo interfira nesse processo. Um funcionário de terceiro escalão passa a valer mais do que um deputado, um senador e, mesmo, um governador de estado. Há evidentemente uma anomalia em questão.
Imagine-se um estado que pode ser amputado de um terço de seu território, que passaria à legislação federal indígena, graças a portarias e estudos ditos antropológicos. O poder concentrado nessas poucas mãos é francamente exorbitante.
Não se trata de uma questão pontual, relativa a uma aldeia indígena em particular, mas de uma questão que envolve o direito de propriedade e a configuração territorial de um ente federativo. Da forma que as portarias foram publicadas, elas podem acarretar uma demarcação que produziria, entre outras conseqüências, desemprego para os trabalhadores desta região, a anulação de títulos de propriedade, a perda de arrecadação tributária, a retração de investimentos e a desvalorização das terras legitimamente adquiridas.
Engana-se quem pensa que se trata de uma questão que afeta somente os produtores rurais.
Trata-se de uma questão muito mais ampla, que concerne a todos os cidadãos sul-mato-grossenses e, através destes, os cidadãos brasileiros em geral. Na recente demarcação da Raposa Serra do Sol, em Roraima, o problema estava localizado numa distante região do país, como se outras regiões e estados não estivessem implicados. Ora, estamos vendo que o longínquo se torna próximo e o particular se torna de interesse geral.
A Constituição brasileira, nos artigos relativos às terras indígenas, estabelece claramente que se trata de terras que os índios "tradicionalmente ocupam", sendo o verbo conjugado no presente. Ele não está conjugado no passado, como se o que estivesse em questão fossem terras que fariam ancestralmente parte de tribos que teriam vivido em tal território. No entanto, há hoje uma tendência antropológica e política de fazer uma outra leitura, claramente inconstitucional, como se uma portaria e um estudo antropológico valessem mais do que a Constituição.
A História brasileira desaparece
Hipoteticamente, consideremos, porém, que esse argumento antropológico-político tivesse validade e se aplicasse a qualquer porção do território nacional. Quais foram as primeiras cidades às quais chegaram os portugueses? Salvador e Rio de Janeiro. É de todos conhecido, por relatos históricos e quadros, que se tratava de regiões tradicionalmente ocupadas por indígenas.
Se fôssemos seguir esse argumento à risca, chegaríamos à conclusão de que estamos diante de terras indígenas, que deveriam ser demarcadas.
O que pensa a FUNAI fazer? Expropriar essas cidades? O que faria com as suas populações, seus empregos, suas propriedades, suas escolas, seus hospitais, seus postos de saúde, suas ruas e seus parques? Criaria ela uma "nova nação" nesses territórios "liberados"?
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
________________
Procurador e fazedeiros divergem sobre o que é área indígena
CORREIO DO ESTADO - MS
O Artigo 231 da Constituição Federal reconhece os direitos indígenas. De acordo com o texto, são reconhecidos aos índios (. .) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Porém, interpretações distintas sobre o que é considerada uma área tradicionalmente ocupada colaboram para o acirramento das discussões entre produtores rurais e autoridades responsáveis pelo o início dos estudos para a demarcação das terras indígenas da etnia Guarani-Kaiowá na região sul do Mato Grosso do Sul.
"A Constituição diz ocupadas, no tempo presente. Os índios têm direito área que eles ocupam hoje, afirmou o proprietário de terras na região de Dourados, cidade a 225 quilômetros, de Campo Grande, Gino José Ferreira, presidente licenciado do sindicato dos produtores rurais do município. A Constituição foi criada desta forma justamente para proteger o direito a propriedade das terras não ocupadas por indígenas.
Se fosse para demarcar tudo o que já foi ocupado por índios, teríamos que demarcar o vale do Anhangabaú [em São Paulo], a praia de Copacabana [no Rio de Janeiro]. Antes, tudo não era ocupado por índios? Por que ninguém vai demarcar, complementou Gino, em entrevista Agência Brasil. As pessoas envolvidas neste trabalho querem desestabilizar o setor produtivo brasileiro.
Oargumento de Ferreira é rebatido pelo procurador da República de Dourados, Marco Antônio Delfino de Almeida, responsável por fazer valer o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em que a FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) se compromete a demarcar os territórios Guarani-Kaiowá sul-mato-grossenses até 2010.
O território tradicionalmente ocupado é aquele que o levantamento antropológico vai apontar. É o território em que os índios e seus ancestrais nasceram, viveram, morreram, e foram sepultados antes da chegada do branco, afirmou Almeida. Só não determinamos a demarcação de territórios indígenas no Nordeste, por exemplo, pois lá não há índios. Não porque eles nunca existiram, mas porque foram dizimados. (informações da Agência Brasil)
loading...
-
Índios Celebram Início Dos Trabalhos De Demarcação De Reservas Em Ms
Vinicius Konchinski Enviado Especial - ABr Aldeia indígena Sassoró, Tacurí/MS - A administradora da Funai de Mato Grosso do Sul, Margarida de Fátima Nicolete, participa do Aty Guassu (Grande Reunião), que marca o início dos...
-
Antropólogo Sugere Que Fazendeiro Compartilhe Terra De Reserva Com Os índios Guarani!
O antropólogo que tem passado grande parte de sua vida profissional prestando assessoria em torno dos problemas dos índios Guarani do Mato Grosso do Sul traz uma estranhíssima proposta de criar um novo modelo de demarcação de terras para aqueles...
-
Impasse No Mato Grosso Do Sul
Terminou em impasse a reunião realizada ontem à noite entre o governo federal e o governo estadual do Mato Grosso do Sul a respeito do reconhecimento de terras indígenas naquele estado. É um impasse aos moldes de uma batalha de Pirro, onde ambos ganham...
-
Dallari E Rosenfield Se Posicionam Sobre Raposa Serra Do Sol
Para nosso conhecimento, registro aqui os discursos do prof. Dalmo Dallari, grande jurista pró-indígena brasileiro, e do filósofo Denis Rosenfield, atual propagandista do anti-indigenismo brasileiro. O discurso de Dallari é um primor de dialética...
-
Mato Grosso Do Sul Entra No Stf Contra Funai
Mato Grosso do Sul mostra sua capacidade de contra-ataque à Funai. Desta vez é o governador do estado que entra no STF com uma ação pedindo a anulação das portarias da Funai que criaram os GTs de identificação que estão no estado tentando fazer...
Antropologia