Nota Pública
Antropologia

Nota Pública


Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), fundada em 1955, tiveram um papel decisivo no questionamento de noções baseadas em julgamentos arbitrários, ao indicar a necessidade de os fatos serem percebidos a partir de outra dimensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que em suas ações pretendem a vigência do direito atribuído pelo artigo 68 do ADCT da Constituição Brasileira de 1988. A perspectiva dos antropólogos reunidos no Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, desde 1994, é expressa em documento do período que estabelece então alguns parâmetros de nossa atuação nesse campo. As questões implícitas na elaboração dos relatórios antropológicos e as experiências concretas dos pesquisadores inseridos nessa rede foram debatidas em inúmeros seminários realizados pela ABA e em seus encontros bianuais ? as Reuniões Brasileiras de Antropologia.

Deste modo, a participação intensa de antropólogos na luta pelo reconhecimento de direitos étnicos e territoriais a segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira, como as comunidades negras rurais e/ou terras de preto, rompe com o papel tradicional desempenhado pelos grandes nomes do campo intelectual, que garantem, com sua autoridade, o apoio às reivindicações da sociedade civil, subscritando, como peticionários, manifestos e documentos políticos. Ao contrário, os antropólogos brasileiros, que têm desempenhado um importante papel em relação ao reconhecimento de grupos étnicos diferenciados e dos direitos territoriais de populações camponesas, ao assumirem sua responsabilidade social como pesquisadores que detêm um ?saber local? sobre os povos e grupos que estudam, fazem de sua autoridade experiencial um instrumento de reconhecimento público de direitos constitucionais.

As manifestações oficiais da ABA em relação aos anteprojetos de lei e às tentativas de organismos governamentais de regulamentar a aplicação do artigo 68º do ADCT, assim como o diálogo constante com o Ministério Público Federal, têm garantido um posicionamento independente das visões e procedimentos comprometidos com interesses próprios aos quadros do poder econômico e político.

Assim, a ABA, em nome dos antropólogos reunidos no GT Quilombos, vem de público manifestar sua posição contrária à edição de nova Instrução Normativa (IN) do INCRA referente à regularização de territórios de quilombo, pelas razões que seguem:

1º - Na proposta da IN os relatórios antropológicos estão subordinados a critérios estranhos à disciplina, como no artigo 9º da proposta do GT Governamental, segundo a qual o relatório técnico de identificação e delimitação deve estar devidamente fundamentado em elementos ditos objetivos, que apontam uma maneira específica de imaginar a realidade aos olhos do Direito e da Administração Pública, pois as possíveis características ?objetivistas?, na prática, funcionam como sinais, emblemas ou estigmas, sendo preciso, portanto, se incluir no real a representação do real, que igualmente orienta as ações sociais. Os itens arrolados no artigo 9º só poderão se transformar em relatório antropológico caso estejam englobados em uma prática disciplinar da Antropologia.

2º - Ao contrário das visões ?objetivistas?, o tipo de participação dos antropólogos na elaboração da RTID, exige uma dimensão interpretativa no estudo de fenômenos sociais, em que o investigador deve fornecer uma explicação sobre o sentimento de participação social dos grupos e do sentido que atribuem às suas reivindicações, assim como as representações e usos que fazem do seu território, o qual deve ser definido a partir dos processos de territorialização produzidos pela pressão de interesses econômicos, conjugados às políticas desenvolvimentistas executadas por programas de governo. Deste modo, o espaço geográfico não é algo fixo, mas imbricado em processos sociais, históricos e de poder. Tal espaço é, sobretudo, etnográfico, e deve ser definido pelos diferentes contextos e às práticas sociais que lhes são próprias, os quais lhe conferem significado, levando-se igualmente em conta processos, alguns até bem recentes, ocorridos em poucas décadas, e que levaram a fragmentação e perda de áreas de ocupação tradicional de comunidades remanescentes de quilombo no Brasil contemporâneo.

3º - Na X Reunião da ABANNE - Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste (de 08 a 11 de outubro de 2007), em participação na mesa redonda ?Regularizando Terras de Quilombo: construção de identidades, conhecimentos autorizados e políticas públicas?, com a presença inclusive do presidente da ABA, dizíamos desde então que a representação normativa dos relatórios antropológicos certamente irá gerar problemas para pesquisadores envolvidos na elaboração dos mesmos. As interconexões entre normas e acontecimentos em algum tipo de manual, estranhas ao fazer antropológico, pode ser uma forma não de gerenciar as diferenças, mas de eliminá-las por uma uniformidade jurídica que se sobrepõe a outros saberes e tradições.

4º - Por fim, nas condições de trabalho de campo para elaboração dos relatórios antropológicos de identificação territorial das comunidades remanescentes de quilombo, os pesquisadores têm se deparado com situações sociais nas quais a identidade quilombola associada à auto-identificação étnica e racial de negro é utilizada como uma afirmação positiva no reconhecimento de si mesmo como ser social. Assim, além do reconhecimento jurídico há o reconhecimento como ente moral e, neste caso, a manifestação mais geral desse reconhecimento seria expresso como respeito. Neste sentido, trata-se de uma luta dessas populações não apenas por ganhos materiais, mas também pela cidadania e contra o racismo, pela busca de respeitabilidade a si, aos seus valores e formas próprias de vida.


Brasília, 29 de abril de 2008.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Presidente da ABA



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