Nossos índios, mais vivos do que nunca
Antropologia

Nossos índios, mais vivos do que nunca



Entrevista concedida à Revista Kalunga em comemoração ao Dia do Índio, 2013, recém publicada pela dita revista.

Antropólogo, professor de pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes comparou em seu livro mais recente, Os Índios e o Brasil: passado, presente e futuro, o morticínio em massa dos índios perpetrado explicitamente pela Coroa portuguesa, durante a colonização do Brasil, ao massacre de judeus e de outras minorias, nos campos de concentração alemães na Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, os que não foram mortos, sofreram igualmente uma perda muito grande de território, foram escravizados e submetidos ao processo de destruição de suas culturas, além do uso de suas mulheres, que terminaram produzindo os filhos que deram as bases da população brasileira até 1800. Os números do Censo e da Funai são divergentes, mas ao contrário do que muitos acreditam, a população indígena tem crescido no País. Gomes considera como referência os índices da Fundação, segundo os quais existem no Brasil 240 povos, com 630 mil pessoas, que falam 180 línguas. Desde meados da década de 1970, o antropólogo se debruça sobre a temática indígena e compilou em seus livros a trajetória de muitas etnias que já existiram no País. Seus trabalhos permitem fazer conexões com o passado e traçar reflexões sobre o presente e o futuro. Nesta entrevista, ele fala de sua experiência como presidente da Funai, de políticas públicas, assimilação, cultura indígena e outros temas. Confira também outros livros: Os Índios e o Brasil, Antropologia Hiperdialética, Antropologia, O Índio na História, Darcy Ribeiro e A Vision from the South, além dos blogs Cultura, Antropologia, Índios (merciogomes.com) e Blog do Mércio: Índios, Antropologia, Cultura (www.merciogomes.blogspot.com).

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Há povos indígenas em todas as regiões do País?

Existem até no Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, onde se imaginava que tivessem desaparecido. Nos últimos 20 anos, surgiram povos, grupos de familiares ou de comunidades no interior dessas localidades que se autoidentificaram como indígenas. Dessa forma, em todos os Estados brasileiros, há populações indígenas, comunidades indígenas, aldeias, terras mais ou menos reconhecidas, embora em muitos casos ainda não demarcadas.
Ao contrário de muitos afrodescendentes, que tentam omitir, as novas gerações reforçam essa ascendência?
Sim. E se formos falar biologicamente, a contribuição do índio na genética brasileira é quase igual à do negro, ou seja, de cerca de 30%, segundo biólogos e geneticistas. A do negro é de 37,38%. A genética indígena se dilui na população. Em muitas partes do Brasil, Amazonas, por exemplo, 70% da população é indígena geneticamente, porém, não culturalmente. No País, ser indígena não é DNA. É uma autoidentidade relacionada com uma comunidade que se autoidentifica como indígena.
O ideário de que o índio é indolente ou preguiçoso ainda permanece?
Há duas coisas presentes no imaginário brasileiro: o índio como o protetor da natureza e também como indolente. Essa mania de chamar o índio de indolente vem da época colonial, quando ele recusava o trabalho escravo. É uma forma de resistência a um sistema opressor de trabalho alienado, sem sentido. Na sociedade indígena, o trabalho está relacionado com a cultura, com aquilo que se produz sobre os bens para consumo e atividades culturais.
Ao contrário do Brasil, entre as sociedades indígenas há particularidades que as tornam iguais?
Existe muita diferença entre os povos indígenas. Há povos, cujas culturas são adaptadas aos rios ou aos lagos, à pesca. Há outros, que vivem no Cerrado, na floresta, na Caatinga, no Pantanal. Eles adaptaram as suas culturas de acordo com o meio ambiente e também pela capacidade de diversidade que todas as culturas têm de conceber coisas novas. Atualmente, são faladas no Brasil 180 línguas diferentes; eram entre 800 e mil, à época do Descobrimento do Brasil.










Na sua opinião, o que impede a Funai de cumprir plenamente o seu papel?
A Funai é um órgão com 2.500 funcionários responsáveis por 13% do território nacional. É onde estão as populações indígenas. Dá para imaginar o que isso representa? O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) tem 6 mil funcionários e cuida de um terço das terras públicas brasileiras. Isso é uma dificuldade, as invasões territoriais ocorrem por causa da falta de pessoal. Há um déficit de funcionários muito grande. A Funai é administrada por pessoas que têm uma visão ongueira do mundo, o que vale é o papel das ONGs. Elas mesmas diminuem as atribuições da Funai, criam regras que reduzem o peso do Estado brasileiro na proteção e na assistência aos índios. Isso agrava e deixa a Funai sem forças nessas grandes questões que estão surgindo, como mineração em terras indígenas, hidroelétricas, estradas; e os índios estão engolindo moscas nessa história. A Funai não consegue obter as compensações e a solidez dos índios nessas questões, também não consegue ter força para persuadir o governo de um lado, que seria importante.
Quais são as políticas indigenistas, que devem ser adotadas para garantir os direitos dos índios?
Primeiro, deve seguir a lei brasileira, que se baseia na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Qualquer tema, assunto ou gestão relacionada com a proteção de terras indígenas tem que passar por uma consulta leal consensuada com os índios. Se eles dizem que não querem hidroelétrica, tem que discutir o assunto com eles. Ou se é tão importante para a nação, tem que convencê-los e compensá-los por isso. Esse primeiro ponto é fundamental, a proteção dos territórios. Segundo, a questão da saúde que sempre esteve atrasada. Embora a população esteja crescendo, não há mais grandes surtos de doenças que os matavam, como a varíola, sarampo e catapora, mas eles sofrem com a assistência médica que recebem do Estado. Além disso, não há assistência capaz de fazer com que a renda econômica dessas populações melhore e adquira uma produtividade maior na venda de seus produtos, para que virem sociedades autônomas, sem que suas culturas sejam destruídas. Issoé uma falha da política pública indigenista brasileira de longos anos, inclusive, quando eu era presidente da Funai, que vem se agravando pela decrepitude do órgão nos últimos sete anos.
Existem populações que se mantêm fidedignas as suas origens,sem contato, inclusive, com outras tribos?
Sim. Há pelo menos 20 diferentes grupos na Amazônia que não querem contato com ninguém. Eles querem viver a sua vida, independentemente de contato com outros índios, muito menos com a sociedade branca.
Com os exemplos que temos de assimilação, é possível manter esses grupos isolados por muito tempo?
Depende do modo que o Brasil vai progredir. Por exemplo, caso o Estado brasileiro mantenha uma grande extensão de terras livres, em grande parte na Amazônia ou em parte do Cerrado, e deixe esses grupos em paz, eles podem viver assim por muito mais tempo. Eu não sei quanto tempo. Há 50 anos, todo mundo dizia que os índios iam se acabar, mas eles não somente se multiplicaram, como ainda se mantêm com quase todos os aspectos e traços culturais que tinham antes. Mesmo aqueles que aprenderam o português, que convivem com fazendeiros, cidadãos e que conhecem o mundo.
De algumas décadas para cá, muitos jovens indígenas têm se preparado para assumir o papel de líderes. De que maneira é feita a escolha?
Em geral, eles precisam ter a capacidade de dialogar e articular com o mundo envolvente. Aprendem o português, os modos em que a sociedade brasileira se relaciona, o discurso político, a retórica, os meandros da nossa cultura, do bem e do mal. A partir daí, se imbuem do espírito de representar o seu povo diante da sociedade brasileira envolvente.










Por que, em entrevistas com lideranças indígenas, eles sempre se mostram saudosistas, nutrindo o desejo de regressar às suas aldeias? Você já esteve nos Estados Unidos ou na Europa? Quando você está lá, não dá saudade do Brasil?
É a mesma coisa. Você acha interessante,
bonito. Mas a sua identidade é brasileira, dá vontade de estar no Brasil. A sua estada é uma experiência cultural de conhecimento do mundo mais amplo. Os índios têm esse mesmo sentimento quando estão na cidade.
Quem seriam os algozes, os inimigos dos índios, na sociedade contemporânea?
Em muitas terras indígenas, por exemplo, no Mato Grosso do Sul, são claramente os fazendeiros. Em épocas anteriores, eles tomaram suas terras ou as compraram do Estado. Os índios foram expulsos e agora estão querendo voltar. Em outras áreas, são os madeireiros que invadem as terras, e tentam corromper os índios para tirar madeira às escondidas. Em outros lugares, são os garimpeiros que invadem as terras dos Ianomâmis, por exemplo. Há também os mineradores de ouro, garimpeiros de diamante. Tudo isso é resultado da falta de políticas públicas. De certo modo, o Estado está devendo muito aos índios. Não é que o Estado seja inimigo deles, nem algoz, mas ele tem uma responsabilidade para com a assistência à proteção das populações indígenas. Mais adiante, é a própria sociedade civil que não se dá conta da importância dos índios como representação da diversidade cultural brasileira.
O que os índios têm a nos ensinar?
Eles nos ensinam a respeitar a natureza, a cuidar dos nossos filhos e respeitarmos uns aos outros. Nos ensinam a ser igualitários, a ser uma sociedade em que todos tenham as mesmas oportunidades e atributos, deveres e gozos; Além disso, também nos ensinaram a dormir em rede, tomar banho três vezes por dia, quando faz calor; a comer mandioca, farinha, gostar de abacaxi, a fumar, apesar de que fumar não é grande coisa. Eles nos ensinam também que uma sociedade pode ser igualitária, em que as crianças têm de ser educadas, fortalecendo as suas personalidades e não as reprimindo.



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