Antropologia
Aporias da questão indígena brasileira
Nos últimos dias algumas mudanças de atitude já se fazem presentes e talvez prevalentes na questão indígena brasileira.
Em primeiro lugar, e esperançosamente, uma turma de três ministros do STF, Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa analisou e rejeitou o pedido da CNA (Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária) para transformar em súmula vinculante o termo do acórdão de 19 de março de 2009 referente à fixação da data de 5 de outubro de 1988 como o marco temporal de ocupação de terra para efeito de afirmação de tradicionalidade de ocupação permanente. Isto quer dizer que esse marco temporal não está "absolutizado" no judiciário. Portanto, a Funai, se souber usar da sabedoria tradicional do indigenismo rondoniano para demarcar terras indígenas, poderá buscar justificativas novas, meios novos, estratégias novas para definir a ocupação tradicional de determinadas terras indígenas que não esteja nesse marco temporal. Quais justificativas novas e novas argumentações serão essas certamente serão aquelas que se poderão deduzir do Estatuto do Índio, que continua vigendo na institucionalidade da questão indígena brasileira. As razões para que esses ministros do STF tenham rejeitado o pedido do CNA foram esclarecidas, ipsis litteris:
"seja pela total inadequação do uso de súmula de jurisprudência materialmente circunscrita a tema diverso daquele tratado na proposta, seja pela inexistência de reiteradas decisões que tenham dirimido definitivamente todos aspectos de tão controvertida questão constitucional"
Isto é, a turma do STF respondeu que o CNA não entendeu em que consiste uma súmula vinculante e seus propósitos, por um lado, o que pegou mal para seus advogados, e, em seguida, que ainda são poucos os casos decididos em cima do acórdão de 19 de março de 2009 para que se leve a matéria à sua condição indeclinável de súmula vinculante. Em consequência, o STF aceitará argumentações caso a caso, e paralelamente os tribunais regionais deverão se pautar por essa atitude.
Em conclusão, a questão de demarcação de terras indígenas está em aberto. A Funai pode trazer novos argumentos para determinar a ocupação tradicional fora dos limites temporais do acórdão citado.
Boa notícia, sem dúvida, que deve ser comemorada pelo movimento indígena brasileiro, por antropólogos e indigenistas comprometidos com a causa indígena.
Um segundo ponto de mudança é algo que está fora de compasso com essa abertura dada pelo STF. Em recente reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), dia 16 de março, os conselheiros acolheram a ideia dos políticos-fazendeiros de mudar a Constituição Federal para que haja pagamento do valor das terras de fazendas que sejam reconhecidas como de tradicionalidade indígena. Ora, pois. Assim, argumentou-se no CDDPH, o alto preço dessas terras irá arrefecer a busca pela demarcação de novas terras. Se supormos que 1 hectare de terra no Mato Grosso do Sul vale entre R$ 15.000 a R$ 20.000, então, para demarcar 10.000 hectares, como Lula falou aos fazendeiros que estava disposto a pagar, "para resolver o problema dos Guarani", sairia por R$ 150 a 200 milhões! E, se fosse pagar pelos 57.000 hectares que o CNA "arrumou" para venda, o preço global mínimo sairia por R$ 855 milhões! E se fossem 500.000 a 1.000.000 de hectares para preencher as necessidades dos Guarani do Mato Grosso do Sul, conforme aventado pelo antropólogo consultor dos GTs da Funai, o valor mínimo seria de R$ 7 bilhões e 500 milhões a 15 bilhões de reais!
Diante disso, só nos resta calar. Porém, nessa semana que passou, o presidente Lula entrou no circuito indígena uma vez mais. Esteve em Ilhéus, conversou com os fazendeiros que têm propriedades na área circunscrita pela portaria de demarcação da Terra Indígena Tupinambá, e lhes prometeu, aos fazendeiros, entendamos, que já tinha combinado com o presidente da Funai para refazer os limites desse decreto. E se for pagar pela área que vier a ser declarada indígena, quanto será?
Um terceiro ponto de mudanças que se consolida a cada dia na Funai é a desfaçatez com que se dão as explicações a cerca da reestruturação do órgão. A extinção de velhas e consolidadas AERs é dado como ótima notícia! Recife, João Pessoa, Oiapoque, Altamira, Parintins, Redenção, Tangará da Serra, Primavera do Leste, Campinápolis, Araguaia, Gurupi, Goiânia, Bauru, Curitiba, Guarapuava, Londrina -- e mais nove núcleos de apoio -- para quê??!! O fim dos postos indígenas é comemorado como a vitória da modernidade contra a velhice e a tradição, pelo surgimento das coordenações técnicas locais. A grande novidade da reestruturação. Já essas novas coordenações técnicas locais a substituir extintas AERs são dadas como tendo as mesmas funções, uma deslavada mentira, já que não terão unidades gestoras. Ou até melhores (sic!), quando se diz que agora elas vão estar mais próximas das terras indígenas e mais bem estruturadas porque vão existir os conselhos de coordenadores, metade índios, metade funcionários, para aproximar os índios da Funai. E isso tudo é dito com espírito de convencimento!
Pelo que se sente na Funai não há contentamento com nada disso. Uns poucos acólitas e a maioria abúlica se esforçam para desparecer e desanuviar-se do que está acontecendo e o que está para acontecer.
No plano político mais alto, no Ministério da Justiça, no novo Ministério dos Direito Humanos, nas lideranças do PT, na Casa Civil, e até mais próximo ao presidente Lula, tudo parece transcorrer sem ressaltos e dúvidas. Uma desestruturação que desmobiliza um órgão de tradição de 100 anos é tratada com sobranceira indiferença, a despeito da contrariedade do maior movimento indígena espontâneo jamais levantado na história do Brasil recente, que tomou a Funai por três semanas e que hoje a faz manter-se sob guarda da Força Nacional. A despeito das opiniões abalizadas de dezenas de indigenistas experientes e até de prelados com experiência indigenista, como Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga. Até a criação de uma secretaria de saúde indígena no Ministério da Saúde é realizada sem qualquer compatibilização com as funções específicas da Funai, das que ainda tem, sem ao menos dialogar com ela, contemplá-la, considerá-la.
Para quem conhece a questão indígena brasileira este é um tempo de liminaridade. As coisas estão confusas e desconexas. Como protestar, se os protestos caem em ouvidos de mercador?
Para onde irá a Funai assim? E o movimento indígena mais intenso que já houve? E os índios, em suas comunidades, em suas terras, em seus desejos de ascensão no panorama político-cultural brasileiro?
Talvez estejamos entrando no tempo equivalente ao que sofreram os índios norte-americanos no início do século XX, quando suas terras foram liberadas para as comunidades com direito a vendê-las ou arrendá-las, postas à disposição das forças do mercado. A Constituição brasileira proíbe isso, pois as terras são consideradas da União. Mas, pelo andar da carruagem, não estará longe o tempo em que isso será aventado como uma possibilidade legislativa!
Isto não é o que Rondon e seus heróicos auxiliares pensaram ao criar o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Rondon esperava que um dia os povos indígenas iriam se tornar autônomos efetivamente, porque, de direito, já o eram como nações! Porém, o que estamos vendo são os povos indígenas à mercê das forças políticas, econômicas e sociais, organizadas em empresas, Ongs e associações, onde o papel do Estado se torna cada vez menor, indiferenciado e desconectado.
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