texto originalmente publicado em: http://www.publico.pt/sup-economia/jornal/antropologos--a-arma-secreta-das-empresas-303210
Deslocam-se ao terreno, percebem os consumidores melhor do que ninguém e descobrem o que falta nas suas vidas. Sem darmos por isso, os antropólogos entraram no mundo dos negócios Ana Rita Faria (texto)
Para uns, é o estudo da evolução do homem ao longo dos milhões de anos em que habita o planeta Terra. Para outros, uma ciência que se confunde com as ossadas dos dinossauros, os vestígios de civilizações antigas e até a figura heróica de Indiana Jones. O mistério reina em torno da antropologia mas, no mundo actual, esta disciplina está a ganhar cada vez mais espaço dentro das empresas.
Algumas das maiores companhias mundiais, como a Microsoft, Nokia e IBM, integram antropólogos nas suas equipas, que as ajudam a conhecer melhor os apetites dos consumidores e a pensar em novos produtos. Só a Intel tem 25 profissionais desta área e foi neles que se alicerçou para deixar de ser apenas uma fabricante de chips e passar a vender directamente ao consumidor (ver texto na outra página).
Mas, em termos práticos, o que fazem realmente os antropólogos dentro das empresa? O ponto de partida é usar os tradicionais métodos antropológicos - observação minuciosa, entrevistas aprofundadas e documentação sistemática - para conhecer os consumidores e ver o que falta nas suas vidas - o telemóvel ideal, uma mobília para a casa, um computador diferente. Segue-se o trabalho com designers e engenheiros para os ajudar a conceber produtos e serviços que encaixam nessas necessidades.
Os exemplos abundam. Foi com a ajuda de antropólogos que a Intel criou o seu portátil para os mercados emergentes (e que, em Portugal, deu origem ao "Magalhães") e que a Apple criou uma organização diferente no "desktop" dos seus computadores. É também graças a estes profissionais que a Samsung está a tentar repensar as suas televisões na era digital e que a Nokia foi a primeira a lançar telemóveis com várias listas de contactos.
Contudo, nem sempre se trata apenas de desencantar um novo produto ou serviço que conquiste os consumidores. Há alturas em que os antropólogos mudam realmente o próprio curso dos acontecimentos dentro de uma empresa e a sua estratégia. Foi o caso da Lego.
Uma incursão ao mundo dos brinquedos e da TV
Quando Jorgen Vig Knudstorp assumiu a direcção da fabricante dinamarquesa de brinquedos em 2004, o cenário era catastrófico. As vendas caíam a olhos vistos, o custo de produção era elevado e as dívidas não paravam de aumentar. Foi neste contexto que a ReD Associates foi chamada a intervir.
Composta por antropólogos, sociólogos e psicólogos, esta consultora dinamarquesa já trabalhou para empresas como a Adidas, Vodafone e Coca-Cola mas teve na Lego um dos seus maiores desafios. "A empresa tinha perdido a sua relação com as crianças", explica ao PÚBLICO Christian Madsbjerg, membro da consultora.
Para perceber o que se passava, a equipa de cientistas sociais passou quatro meses a trabalhar com um grupo de 100 crianças. Falaram e brincaram com elas, acompanharam-nas na escola, estiveram em casa com a família e, no final, descobriram onde estava o problema: todas as pressuposições da Lego sobre como as crianças gostavam de brincar estavam erradas.
"A Lego pensava que as crianças gostavam mais de playstations, de jogos fáceis e de encontrar instantaneamente diversão nas brincadeiras", explica Christian Madsbjerg. Mas a realidade era bem diferente. "Os miúdos continuavam a gostar muito de brincadeiras físicas, de coisas difíceis e não se importavam de perder tempo a descobrir como resolver o enigma de um brinquedo", conclui. A Lego teve então de mexer nas peças do seu negócio, acabar com alguns produtos e criar outros. As crianças voltaram.
Um desafio parecido colocou-se mais recentemente a Christian Madsbjerg, mas desta vez vindo das televisões, com a sul-coreana Samsung. Durante os últimos dois anos, a equipa do cientista social (que não é formado em antropologia mas sim em ciência política e filosofia) trabalhou em 14 países para ver como as pessoas usam as novas televisões de ecrã plano. "Apesar do sucesso inicial destas televisões, o seu preço estava a ser empurrado para menos um terço e o volume de vendas começou a cair", revela Christian Madsbjerg. Para a Samsung, era preciso dar a volta à situação.
Ao olharem para o modo como as pessoas usam a televisão hoje em dia e como ela se conjuga com a tecnologia, os antropólogos perceberam que algo tinha de mudar. "Em primeiro lugar, a televisão tinha de deixar de ser um pedaço de electrónica para ser uma peça que faz parte da mobília", diz Christian Madsbjerg.
Em segundo, tinha de deixar de ser apenas uma televisão para ser um "software", uma espécie de computador gigante com um tipo diferente de interacção. Como os resultados do projecto ainda estão a ser desenvolvidos e aplicados pela empresa, Christian Madsbjerg não pode adiantar muito mais. Mas uma coisa é certa: se um novo conceito de televisão sair em breve das fábricas da Samsung, terá uma costela de antropólogo.
Ir além da pesquisa de mercado
Enquanto na Europa o mais comum é as companhias recorrerem a pequenas ou médias empresas de consultoria e pesquisa etnográfica como a ReD Associates, nos Estados Unidos os antropólogos ganharam entrada directa nos negócios. Mas, tanto num caso como no outro, estão a tornar-se cada vez mais populares.
Segundo Ken Anderson, 53 anos, um dos 25 antropólogos da Intel, "as empresas perceberam a necessidade de conhecer as pessoas mais profundamente, os seus valores, esperanças, sonhos e os desafios que enfrentam, de modo a conceber e vender produtos". Para este antropólogo, as pesquisas de mercado já não suficientes, até porque só mostram uma face da realidade.
Ao deslocaram-se ao terreno onde as pessoas vivem e trabalham, onde compram e onde se divertem, os antropólogos conseguem descobrir as suas necessidades, mesmo aquelas de que as próprias pessoas não se deram conta. A diferença é clara: uma empresa de estudos de mercado pergunta o que as pessoas querem ou fazem, um antropólogo vê o que elas realmente fazem e consegue perceber o que querem.
Na base, um princípio semelhante ao que o norte-americano Henry Ford seguiu quando, nos primeiros anos do século XX, lançou a Ford: "Se tivesse perguntado às pessoas o que queriam, elas teriam dito cavalos mais rápidos". Nunca carros. Mas não, Henry Ford não era um antropólogo, por mais faro que tivesse. Na verdade, os primeiros antropólogos só começaram a fazer a sua entrada no mundo dos negócios algumas décadas mais tarde, por volta dos anos 30.
Nessa altura, as empresas aproveitavam as ciências sociais, incluindo a antropologia, para descobrir como tornar os seus trabalhadores mais produtivos. Só a partir dos anos 60 e 70, quando os gurus da gestão coroaram o consumidor como rei, é que algumas companhias começaram a recrutar antropólogos e outros cientistas sociais para conhecer melhor o seu público. A Xerox, empresa norte-americana conhecida por ter inventado a impressora, foi a pioneira.
Em 1979, dois antropólogos - Lucy Suchman e Julian Orr - integraram o centro de estudos da Xerox para estudar como as pessoas interagiam com a tecnologia. Ao observarem e filmarem a forma como era usada uma fotocopiadora, os investigadores perceberam que as pessoas tinham bastantes dificuldades em fazer uma mera fotocópia. Faltava simplicidade. A solução foi um botão verde a dizer "copy" ("copiar") em todas as máquinas da marca. E, ainda hoje, por mais funcionalidades que as fotocopiadoras possam ter, o botão continua lá.
Desde esses tempos cada vez mais antropólogos têm-se infiltrado no mundo das empresas. Actualmente, constata Christian Madsbjerg, "todas as grandes empresas mundiais que ainda não têm este tipo de profissionais estão a pensar recrutá-los, porque já viram que funciona". Para o responsável da ReD Associates, isso vai fazer com que a antropologia corporativa se torne, dentro de cinco a sete anos, uma "prática normal" dentro das empresas e não "especial", como ainda é vista hoje em dia.
Alex Taylor, sociólogo da tecnologia a trabalhar na Microsoft, partilha da mesma opinião. "A tendência é que as empresas tenham pelo menos alguém que possa fazer trabalho de campo". Para o profissional, que imerge no dia-a-dia dos consumidores em busca de novas ideias para a empresa (e sobre as quais se fecha em copas), a pesquisa antropológica "tornar-se-á um emprego fixo nas grandes empresas que lidam com os consumidores".
Fazer tábua rasa e desafiar preconceitos
Foi sobretudo com as empresas tecnológicas que a importância dos antropólogos se tornou mais visível. A intensa competição criada com a explosão da Internet e das tecnologias da informação fez com que os executivos do sector precisassem cada vez mais de saber como é a tecnologia afecta os consumidores e como eles reagem a ela. Isso permitiria avaliar qual o impacto dos produtos antes do seu lançamento no mercado, o que é fundamental para as empresas dado o elevado custo de fabrico dos produtos tecnológicos, mas também a noção (já provada em vários estudos) de que pelo menos 75 por cento desses novos produtos falham pela falta de um mercado.
Além disso, a entrada das empresas tecnológicas nos países emergentes tornou a pesquisa antropológica, mais do que uma vantagem competitiva, uma necessidade. É o caso da finlandesa Nokia, onde vários antropólogos trabalham com a equipa de design para "ajuda a criar novas ideias de como os telemóveis irão ser, funcionar e ser usados no futuro", explicou ao PÚBLICO Jan Chipchase.
Nos projectos que realizou recentemente na Índia e no Uganda, Jan percebeu que era preciso desafiar uma suposição errada: a de que os telemóveis são um produto individual. "Para muitos, o telemóvel é algo partilhado, usado por toda a família ou até alugado por empresários locais para uso de toda a aldeia", evidencia. Mas, sendo assim, faltava uma coisa aos telemóveis: listas de contactos diferentes para cada utilizador. Foi essa a aposta da Nokia.
Esta necessidade de pôr em causa conceitos pré-estabelecidos ou, melhor dizendo, de partir para o terreno sem nenhuns é o ponto de partida da pesquisa antropológica. "Começamos com um cenário limpo, sem hipóteses à partida, e prestamos atenção a todos os detalhes da realidade", explica ao PÚBLICO Melinda Rea-Holloway, 43 anos, socióloga que está à frente da Ethnographic Research (ER), uma das muitas empresas nos EUA que faz pesquisa etnográfica para grandes companhias. Pelas suas mãos, e dos colegas antropólogos, passaram empresas dos mais variados sectores como a Dell, Electrolux, Kellog's, Novartis e M&M Mars.
Um dos métodos mais usados pela ER é gravar em vídeo a maioria das suas intervenções no terreno. Contudo, realça Melinda Rea-Holloway, a pesquisa antropológica não pode ficar-se pela simples observação. Apesar de esta poder demorar meses ou até anos, é com a análise que os antropólogos têm de gastar a maior fatia do seu tempo. "Se gastar quatro horas a observar ou falar com alguém, preciso de 16 a 20 horas para analisar o material e tentar descobrir padrões e tendências", conclui.
Ed Liebow, 55 anos, sabe bem o tempo gasto com a profissão. O investigador, que é um dos 20 antropólogos a serviço da Battelle (organização norte-americana da área da ciência, saúde e tecnologia), trabalhou durante 15 anos com um grupo de físicos para tentar perceber o grau de contaminação a que as pessoas tinham sido expostas, com a produção e teste de armas nucleares nos EUA.
"Todos os modelos que havia baseavam-se em pressuposições eurocêntricas de quanto tempo as pessoas passavam fora de casa, o que comiam, que tipo de casas tinham", explica Ed Liebow. Ao substituir essas hipóteses pela observação directa, Liebow conseguiu mostrar que a exposição era bem mais elevada em alguns casos, permitindo melhorar os serviços de saúde a essas comunidades.
Portugal à margem
Extremamente atractiva para as empresas tecnológicas, mas também para as da saúde, banca, retalho e entretenimento, a antropologia está a conseguir conquistar ainda uma outra actividade: o marketing. Através dela, os antropólogos a trabalhar na publicidade conseguem fazer análises culturais e repensar problemas ligados a uma marca.
"A vantagem de um conhecimento mais profundo do consumidor ajuda a guiar o marketing em direcções mais criativas e a criar anúncios mais provocantes", diz Timothy Malefyt, 48 anos. O publicitário despertou para o mundo da antropologia depois de fazer o seu doutoramento em Espanha, a estudar símbolos nacionais de performance (como a música e dança flamengas). Hoje, dirige a unidade de pesquisa "Cultural Discoveries" ("Descobertas Culturais") da agência BBDO, enviando antropólogos para o terreno estudar o significado das marcas na vida das pessoas.
Em Portugal, parece ser só através do marketing que a ligação dos antropólogos às empresas ganha alguma visibilidade. De acordo com Susana Matos Viegas, presidente da Associação Portuguesa de Antropologia, alguns profissionais dessa área, ligados a centros de investigação ou universidades, estão a colaborar com empresas publicitárias. Contudo, "não é empregabilidade segura, mas apenas colaborações esporádicas", realça.
Um desperdício? A julgar pelo sucesso que estes profissionais têm tido dentro das empresas, poderia dizer-se que sim. Descoberta a sua capacidade de ver os consumidores ao microscópio, os antropólogos renasceram para o mundo dos negócios e, como diz Ed Liebow, estão a "dar vida aos números".
A Xerox foi a primeira empresa a ter antropólogos, em 1979. A Intel é a empresa com maior número de antropólogos: 25. Muitas companhias, como a Microsoft, IBM ou Nokia têm equipas de antropólogos, enquanto outras (Lego, Samsung, Kellog's, Pfizer, etc) contratam empresas de pesquisa antropológica. Várias empresas de marketing têm integrado nas suas equipas antropólogos e outros cientistas sociais.
Em geral, a pesquisa antropológica envolve uma observação minuciosa (em que o investigador pode participar ou não), entrevistas (em que é o entrevistado a orientar todo a conversa e não o entrevistador) e uma análise aprofundada, apoiada em teorias da ciência social.
Os antropólogos ajudam as empresas a perceber as necessidades dos consumidores, identificar oportunidades comerciais viáveis e estratégicas, minimizar o risco de inovação e desenvolver produtos mais eficazes do que a concorrência.
Christian Madsbjerg, da ReD Associates