por Bela Feldman-Bianco
A antropologia constitui campo consolidado e dinâmico no Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares de excelência científica. Combinando o interesse em compreender o mundo com a preocupação em desvendar os códigos culturais e os interstícios sociais da vida cotidiana, a pesquisa antropológica é extremamente relevante para desvendar problemáticas que estão na ordem do dia sobre a produção da diferença cultural e desigualdades sociais, saberes e práticas tradicionais, patrimônio cultural e inclusão social e, ainda, desenvolvimento econômico e social. No quadro da globalização contemporânea, além de contribuir cada vez mais para a formulação de políticas públicas e propostas para a sociedade, a antropologia apresenta os aparatos necessários para expor a dimensão humana da ciência, tecnologia e inovação. Ao mesmo tempo, no curso de seus processos de transformação e internacionalização, surgem novos desafios e perspectivas para o ensino, a pesquisa e a atuação de antropólogos e antropólogas.
Esses desafios incluem, por exemplo, as políticas científicas que favorecem a expansão da pós-graduação. Os números são eloquentes. Enquanto em 2001 havia dez programas de mestrado e seis programas de doutorado, hoje são 20 programas de mestrado e 12 de doutorado que, ainda que insuficientes, implicaram em melhor distribuição no Nordeste e na inédita e bem-vinda criação de dois mestrados e doutorados na Amazônia Legal. Dobrou-se o número de programas em dez anos. Abrangem, ainda, um aumento da demanda discente por cursos de antropologia, a ampliação do mercado de trabalho, além de mudanças no campo de atuação frente às políticas educacionais e políticas públicas, de modo geral, inclusive no que concerne às relações da antropologia com o Estado e a sociedade.
Assiste-se, ademais, à emergente reapropriação do modelo dos "quatro campos" (arqueologia, antropologia social/cultural, antropologia biológica e antropologia linguística) e à revisão das relações com outras áreas constitutivas das ciências humanas. Este modelo, originalmente utilizado para analisar a humanidade através de grandes esquemas evolucionistas e difusionistas, está sendo reelaborado e sobreposto às práticas de trabalho de campo, desenvolvidas a partir de estudos sobre culturas e sociedades particulares. A tradição antropológica de pesquisa de campo, requerendo vivência prolongada dos pesquisadores com seus sujeitos de pesquisa e implicando em compromisso perante esses sujeitos, fornece um aprendizado para olhar o mundo com sensibilidade e, assim, compreender, apreciar e traduzir códigos culturais diversos e respeitar a diferença cultural. Destarte, a produção antropológica tem o potencial não só de desenvolvimento científico no sentido restrito, mas de ação social no sentido mais amplo, particularmente quanto à elaboração de políticas públicas para segmentos sociais urbanos e rurais em situações de desvantagem e risco social e grupos étnicos diferenciados.
Com base na constante renovação de seus horizontes empíricos, antropólogos e antropólogas têm realizado pesquisas de ponta na intersecção de várias áreas de conhecimento. Destaca-se a ampla experiência de pesquisa na Amazônia, tanto no Cerrado quanto no Pantanal, sobre a relação entre populações, agro-biodiversidade e conhecimento tradicional, desenvolvimento e padrões de agricultura sustentável, conflitos ambientais, entre outros. Ressalta-se também a relevância da pesquisa antropológica na interface com as políticas públicas para as populações tradicionais. A qualidade e seriedade dessa atuação dos antropólogos exprimem-se, por exemplo, na existência de um duradouro e ativo convênio entre a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Ministério Público da União.
Estudos realizados na cidade, seja na intersecção com a sociologia ou com o direito, têm examinado problemáticas sobre, por exemplo, grupos urbanos, pobreza, movimentos sociais, violência, justiça, religião e políticas de administração de conflitos, entre outras que podem igualmente subsidiar políticas públicas. Nesse âmbito, os estudos sobre gênero, família, gerações, sexualidade e reprodução recobrem focos muito importantes de preocupação pública. Por sua vez, os trabalhos em antropologia visual são cruciais tanto para a divulgação da disciplina quanto para compreensão de uma sociedade cada vez mais imagética. Ainda que incipiente, desenvolve-se com grande vigor a antropologia da ciência e da técnica, acompanhando tendências internacionais. Na interconexão com a saúde, a análise antropológica torna-se de grande valia para se entender as representações sobre doenças e processos terapêuticos como parte dos sistemas simbólicos culturalmente ordenados e os contextos sociais nos quais ocorrem, como também para examinar e analisar os aspectos organizacionais, institucionais e político-ideológicos dos programas de saúde pública.
Concomitantemente à histórica predominância de estudos relacionados à etnologia indígena, às populações afro-brasileiras, às questões do campo e da cidade no Brasil, bem como aos diversos aspectos da cultura nacional, há antropólogos realizando pesquisas na América Latina, África, Europa, América do Norte e em países como Timor Leste e China. Como resultado, a antropologia do Brasil ocupa hoje inegável liderança na América Latina. Pela ação pioneira da ABA na criação do World Council of Anthropologial Associations, as antigas relações com a antropologia francesa, inglesa e norte-americana foram redefinidas, e novos diálogos institucionais e acadêmicos foram iniciados com antropologias de outros continentes.
Essa multiplicação de temáticas e sujeitos de pesquisa apresenta desafios que requerem uma agenda de prioridades de pesquisa. Se o trabalho de campo (que tende a ser individual) e a relação artesanal entre orientador e orientando constituem pontos fortes da produção do conhecimento antropológico e da formação disciplinar, ao mesmo tempo tendem a levar a uma aparente fragmentação da produção em grande número de linhas e grupos de pesquisa. Para não se perder essa indispensável característica da pesquisa antropológica minuciosa e intensa, as perspectivas que se abrem são no sentido de se estimular a formação de redes que possam levar à elaboração de grandes projetos transdisciplinares. Essa estratégia molda, por exemplo, a emergente criação dos INCTs, alguns dos quais liderados por antropólogos. A ampliação do mercado de trabalho traz também desafios para a formação e a atuação dos antropólogos em órgãos governamentais e não-governamentais, no Ministério Público, nas empresas e nos movimentos sociais, cujas demandas implicam, muitas vezes, expertise em laudos antropológicos. Com a reestruturação e expansão das universidades federais, em vez da tradicional formação em ciências sociais ou da abertura de mestrados profissionais, foram criados vários cursos de graduação em antropologia que visam propiciar a necessária competência profissional, com ênfase em pesquisa de campo e interfaces com outras áreas interdisciplinares. Como são cursos novos e polêmicos, com currículos variados, torna-se imperativo acompanhar, avaliar e refletir criticamente se suprem as necessidades de formação.
A crescente relação entre a antropologia e políticas públicas no contexto brasileiro contemporâneo e o papel de intermediação dos antropólogos entre Estado e movimentos sociais constituem desafios que merecem reflexões propositivas. Nesse sentido, deve-se levar em conta que as transformações no próprio corpus conceitual e analítico da disciplina se fazem acompanhar de mudanças nas relações com os sujeitos da pesquisa antropológica, seja por seu acesso ao sistema formal de ensino (inclusive em programas de pós-graduação em antropologia), seja pela crescente agência política que passaram a desempenhar em cenários globalizados. Se falar junto, falar com estas populações (mais do que falar em lugar delas) é um imperativo que a ABA afirmou na luta pelo reconhecimento dos direitos das populações tradicionais, hoje esses sujeitos estão se tornando parceiros e colegas tanto no âmbito acadêmico como de atuação política. Essa parceria marca um novo ciclo de atuação política dos antropólogos no Brasil.
Bela Feldman-Bianco é presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) (2011-2012), professora colaboradora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e co-coordenadora do GT Migración, Cultura y Políticas da Clacso (2011-2012)
Originalmente publicado em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252011000200002&script=sci_arttext&tlng=en