Antropologia
Três visões indigenistas lutam pelo poder
A passagem de um governo a outro, mesmo que ambos sejam do mesmo partido e com a mesma orientação política, sempre ocasiona expectativas de mudanças. Isto certamente está se dando na questão indígena brasileira, especialmente quanto à direção e a orientação política da Funai, mas também em relação a outros órgãos e instituições que tratam de algum modo do assunto indígena.
Muito das expectativas de mudanças não tem qualquer caráter ideológico, ao contrário, se deve a interesses pessoais, de manutenção de cargos ou, ao revés, de obtenção de cargos. Os que lá estão aboletados não querem sair porque suas vidas dependem das vantagens financeiras que os cargos propiciam.
Entretanto, na questão indígena brasileira pode-se constatar que, para além dos interesses pessoais, está em curso uma grande batalha de posicionamentos ideológicos, de visões de mundo sobre os povos indígenas no Brasil e suas condições de vida e continuidade histórico-cultural.
São três as principais visões ideológicas que norteiam a questão indígena brasileira, que criam modos de pensar e agir sobre os povos indígenas, do ponto de vista daquelas pessoas e agentes que não são indígenas.
A primeira grande visão é o que chamamos de indigenismo rondoniano. Ela advém da implantação da primeira política indígena de caráter republicano por parte do Estado brasileiro. Essa política foi pensada e estabelecida pelo Marechal Cândido Rondon e diversos de seus discípulos e auxiliares, a partir da inspiração do programa positivista brasileiro. Em outra parte desse Blog há um artigo sobre o que é o indigenismo rondoniano em toda sua complexidade e histórico. Ele contém as seguintes proposições, algumas das quais já se tornaram básicas e inerentes ao próprio Estado brasileiro:
a. Os índios são os habitantes originários do Brasil, com culturas próprias, e por isso merecem um tratamento diferenciado por parte do Estado republicano. Isto deve estar inscrito na Constituição Federal do país e como lei específica.
b. O Estado brasileiro deve ter um órgão de proteção e assistência aos povos indígenas que se responsabiliza pela relação de intermediação entre eles e o resto da Nação.
c. Cabe ao Estado defender e proteger os povos indígenas da sanha reconhecidamente expansionista e deletéria da sociedade brasileira.
d. Isto significa proteger os territórios indígenas, através da sua demarcação, mantendo sua incolumidade e o usufruto exclusivo de suas riquezas naturais; e assistir as populações indígenas para que elas se fortaleçam e criem, no correr do tempo, mecanismos de auto-proteção e auto-sustentação para enfrentar, por conta própria, as dificuldades inerentes ao processo expansionista brasileiro que os atingem.
e. O propósito final da política indigenista oficial é integrar os povos indígenas à Nação brasileira, sem que eles percam sua identidade e características culturais.
A segunda visão ideológica do indigenismo brasileiro é a que podemos chamar de indigenismo cristão, o qual, mais tarde, pela influência da moderna evangelização cristã, adquire o adjetivo derivado do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, daí, cimista. Ela advém originalmente da Igreja Católica e de seu papel na formação do Brasil. Os índios são aqui considerados seres incompletos, por não professarem a religião cristão, na vertente católica, mas poderão vir a ser completos se forem cristianizados. Com tal visão, a Igreja Católica, através das ordens religiosas, especialmente a jesuítica, fez um esforço imenso de catequização ao longo de 400 e tantos anos visando reparar essa mal-considerada incompletude. Tendo conseguido êxito de conversão e desestruturação religiosa com diversos povos indígenas, o indigenismo cristão contribuiu decisivamente para não tanto a integração desses povos à nação, mas sua desintegração cultural e consequente assimilação como contingentes populacionais mestiçados com populações brancas e negras. Aqueles povos que, mesmo doutrinados no catolicismo popular, conseguiram sobreviver e manter uma coesão interna, lutam para redefinir sua condição religiosa, buscando sacralizar rituais tradicionais e ritos assimilados de outros povos.
Modernamente, o indigenismo cristão-cimista ganhou uma forte coloração política advinda da Teologia da Libertação. Por essa teologia, pela aplicação dessa visão cristã do mundo, os índios são equiparados aos oprimidos da Terra, cuja salvação depende não só de Deus, como também da consciência política de sua situação de oprimido. O indigenismo cristão-cimista pretende postergar as atividades doutrinárias para um período em que os povos indígenas tenham uma situação política equilibrada. Isto significa, em termos das condições propostas pelo indigenismo rondoniano, ter suas terras demarcadas, uma boa situação de saúde e outras condições de estabilidade cultural e política. O papel do missionário do CIMI, portanto, é de despertar os índios para as condições de sua opressão, e movê-los à luta para que eles obtenham as condições sociais requeridas. Entretanto, nesse ínterim, por ser movido pela pressão da Igreja Católica tradicional, e pela competição religiosa com as igrejas evangélicas, os missionários cimistas não podem deixar de procurar incutir preceitos e ensinamentos cristãos aos índios, mesmo aqueles de recém-contato, como os Guajá e os Mynky, pois que, na visão da Teologia da Libertação, o sentimento cristão constitui também condição para sua libertação da opressão política e da inferioridade religiosa. Daí porque o indigenismo cristão-cimista se imbui de uma visão messiânica do mundo e tenta incutir essa visão naqueles povos indígenas com os quais seus missionários obtiveram um relacionamento mais presente e mais duradouro. O caso mais evidente dessa visão messiânica se projeto sobre os povos Guarani, especialmente do Mato Grosso do Sul, interpretados como os mais oprimidos e como aqueles que têm uma relação religiosa, semi-cristã, que favoreceria uma futura doutrinação (em lembrança aos tempos dos jesuítas).
Na relação com o Estado brasileiro, o indigenismo cristão-cimista segue uma velha orientação da Igreja Católica e afirma uma oposição arraigada e agressiva aos seus preceitos, à sua modernidade, à sua laicidade, à sua indefectível inserção no mundo contemporâneo, especialmente no mundo globalizado. Daí sua visão de que os povos indígenas só teriam futuro se voltassem às condições históricas pré-modernas, ou ao menos a um posicionamento de rejeição às condições atuais do desenvolvimento econômico-cultural do Brasil. Com isso, os povos indígenas ficam numa situação de indecisão: se devem lutar por sua inserção no mundo moderno, mantendo suas condições político-culturais, como propõe o indigenismo rondoniano, ou se voltam a uma situação pregressa, de cunho religioso, difícil de ser realizada, mas fundamental para o indigenismo cristão-cimista. O propósito básico do indigenismo cristão-cimista é tornar os índios cristãos, mantendo suas culturas, uma ululante contradição em termos.
A terceira visão sobre a questão indígena é aquela que já chamamos em outras ocasiões de indigenismo neoliberal, própria das ONGs e de grupos sociais que revolvem duplamente em torno do Estado e dos movimentos ambientalistas estrangeiros. A palavra neoliberal parece ofensiva aos praticantes desse indigenismo, visto que muitos deles pertencem a partidos que professam uma visão estatizante da economia ou socialista do mundo moderno. Entretanto, a palavra neoliberal os qualifica adequadamente ao levarmos em conta dois aspectos inerentes a esse termo:
1. O indigenismo neoliberal professa claramente uma atitude anti-estatal. Isto é, a visão neoliberal considera que o Estado (vide Funai) tem sido deletério para os povos indígenas historicamente, porém não a sociedade civil (sic), e que é incapaz de exercer plenamente o indigenismo rondoniano, o qual é por isso mesmo considerado ultrapassado. Em consequência, o indigenismo neoliberal se arvora um lugar de destaque no indigenismo, não como complemento ao Estado, mas como ator e agente indutor de visões e ideologias modernas. Entre essas visões, estão: (a) o discurso de que os povos indígenas não devem se integrar à Nação brasileira; (b) a mediação administrativa e financeira nas negociações internacionais das terras indígenas visando obter recursos via compensação de carbono; (c) e que a aplicação de política sobre os grupos indígenas chamados isolados deve partir da iniciativa de ONGs em acordo com a Funai e com recursos de órgãos internacionais, tais como o mal visto USAID;
2. A visão neoliberal implica, portanto, uma visão comercial dos povos indígenas, a partir dos quais as ONGs sobrevivem como empresas camufladas e podem obter recursos de fontes diversas, desde organizações cristãs da Europa até empresas doadoras, países com políticas internacionais ou ambientalistas, e até o próprio governo americano, via USAID e ONGs americanas.
O indigenismo neoliberal tem sobrevivido e crescido nos últimos anos graças à condição de ter um pé dentro do governo e outro pé no movimento ambientalista internacional. Com um pé obtem recursos, com o outro condições e legitimidade da comunidade ambientalista e até antropológica para realizar o que pretende. O objetivo principal do indigenismo neoliberal é ... difícil de dizer. Segundo o discurso atual é "inserir" o índio nas políticas públicas.
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Diante dessas três visões onde poderá situar-se o governo Dilma? Eis o seu dilema. Entretanto, mirando nos resultados dos dois mandatos do presidente Lula, talvez o novo governo possa fazer uma opção mais qualificada, diante dos novos desafios que terá pela frente. Eis esses resultados resumidos da seguinte forma:
No primeiro mandato do governo Lula, o indigenismo rondoniano prevaleceu, com realizações na área de demarcação de terras indígenas (67 homologações), na ampliação da participação indígena na administração da Funai, e na realização da maior Conferência Indígena já feita no Brasil. Entretanto, a direção da Funai teve seu maior desafio nas críticas e na movimentação contrária ao indigenismo rondoniano por parte das visões e instituições cimistas e neoliberais.
O segundo mandato do presidente Lula foi dominado por uma estranha mescla de indigenismo cimista e neoliberal, com membros dessas instituições lutando para obter melhores posições e concessões do Estado. Apesar do apoio explícito do presidente Lula, prevaleceu uma política de ambiguidade das visões cimista e neoliberal, cujos resultados foram quase todos negativos: a expressiva diminuição da homologação de terras indígenas (apenas 16 em 4 anos, a menor desde a ditadura militar), a alienação da presença de lideranças indígenas tradicionais, ou de raiz, nas políticas indígenas, a displicência na obrigação de fazer consultas informativas e livres com os povos indígenas em razão de projetos econômicos que os impactassem, e uma inacreditável desestruturação da Funai através do Decreto 7506/09. Por tratar o órgão e a questão indígena com leviandade histórica, outro resultado negativo foi a disposição do STF de produzir a mais negativa decisão sobre demarcação de terras indígenas desde o ministério Cordeiro de Faria, e ter levantado a mais forte e disseminada oposição a novas demarcações por parte dos fazendeiros do país. O resultado final é uma anomia completa na política indigenista atual, com insatisfações pululando por todos rincões onde há povos indígenas.
Enfim, como já dizia Machado de Assis, ao vencedor, as batatas!
Entretanto, a história continua e os índios estão vivos!
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