Missionário do CIMI analisa os três indigenismos no Brasil
Antropologia

Missionário do CIMI analisa os três indigenismos no Brasil


Um dos principais membros do CIMI, Saulo Feitosa, dá entrevista ao IHU sobre o indigenismo.

Ele reconhece a existência dos três indigenismos propostos neste Blog, porém analisa essas três modalidades de forma diferente. Chama o indigenismo do CIMI de indigenismo missionário (pergunto: missionário de quê, se não do cristianismo?). Considera que a Funai está sendo trabalhada pelo indigenismo neoliberal, que é corrupta e autoritária, que fez uma reestruturação desastradas, porém, ao mesmo tempo diz que a atual direção da Funai usa "conceitos do CIMI", de um modo que parece estender seu apoio à atual direção do órgão.

Saulo mantém a desgastada cantilena, criada por alguns antropólogos na década de 1980, e hoje já superada pelas evidências dos resultados, segundo a qual o indigenismo rondoniano teria sido importante no passado, mas não é mais no presente, pois seria "integracionista tutelar" (sic). Avalia que Rondon foi algo excepcional, num tempo em que os índios estavam sendo dizimados, porém diz inclusive que as terras indígenas demarcadas são "campos de concentração", e que agora isto está diferente. Não entendi: será que quis dizer que agora as ONGs, os estrangeiros e as missões deitam e rolam nas terras indígenas?

Desconsidera que o indigenismo rondoniano via as culturas indígenas como formas próprias de viver, por isso é que era contra a catequese missionário. Ignora que o indigensimo rondoniano foi ampliando sua atuação no tempo, inclusive obtendo novas categorias antropológicas, através de antropólogos e indigenistas como Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, Carlos Moreira, Orlando Villas-Boas e outros, a ponto de formular o conceito de habitat e com isso favorecer a criação do Parque Indígena do Xingu e assim dando o exemplo para a uma nova conceituação de terras indígenas que permitiu a demarcação de amplas terras indígenas na atualidade. Esquece que o indigenismo rondoniano, ao contrário de outras práticas indigenistas mundo afora, acatou o conceito de autonomia cultural e política dos índios. Lembremos que foi Rondon que chamou os povos indígenas de Nações Autônomas (mesmo como militar!), ainda em 1910!. O fato do indigenismo rondoniano falar em integração dos índios à sociedade nacional é de uma evidência histórica cristalina, e não implica a sua perda de identidade cultural, ao contrário. Esta formulação está no Art. 1º do Estatuto do Índio e em vários outros artigos, muito antes da conceituação genérica da Constituição de 1988. O que passa despercebido ao ínclito missionário é que política de inclusão atualmente praticada é mais assimilacionista do que integracionista, ao contrário da política rondoniana, por exigir mais auto-entrega dos índios aos ditames políticos e culturais dos órgãos vigentes.

Bem, a entrevista é sincera e transparente. Só lendo para entender o que um missionário católico pensa da questão indígena no Brasil.

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4/1/2011
Indigenismo missionário, uma defesa pela vida. Entrevista especial com Saulo Feitosa
?Em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico?. A análise é do vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Saulo Feitosa.
Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, ele acentua que o governo Lula teve ?um discurso progressista, mas uma prática conservadora?.
A respeito da orientação política da Fundação Nacional do Índio (FunaiI), constata que a forma como esse órgão está estruturado ?é marcada por um forte componente de corrupção e autoritarismo. E isso é difícil de ser mudado?.
Ele classifica o indigenismo praticado pelo governo federal como neoliberal, interessado em ?transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas?.
Feitosa destaca que a evangelização do CIMI se expressa na ?defesa pela vida?. E completa: ?O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural?.Saulo Feitosa é graduado em Filosofia e História, com especialização em Bioética. Atualmente, ocupa o cargo de vice-presidente do CIMI. Desde 1980, vem trabalhando junto aos povos indígenas, acompanhando suas lutas pela recuperação étnica, territorial e cultural.Confira a entrevista.
IHU On-Line ? Há uma disputa de poder no contexto da política indigenista atual brasileira?
Saulo Feitosa ? Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por exemplo, não ocupa qualquer cargo na esfera governamental e não tem essa pretensão. O que existe no Brasil são concepções diferentes de indigenismo. No ano passado o Estado brasileiro completou 100 anos de indigenismo. O indigenismo começou com Marechal Rondon, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e que teve continuidade com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Então, temos no Brasil, um indigenismo oficial, governamental, o indigenismo missionário, que é o que nós fazemos, e o indigenismo das organizações não governamentais (ONGs). Há modelos de indigenismo diferentes, portanto. Mas em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico. Esse indigenismo tem como base a figura da tutela. O Estado é o tutor dos índios. E o outro modelo, que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que defende a autonomia dos povos indígenas. É esse indigenismo que o CIMI defende.
IHU On-Line ? A política indigenista do governo Dilma pode ser diferente da forma como Lula tratou essa questão?
Saulo Feitosa ? governo Dilma seria uma continuidade do governo Lula. Este adotou um discurso progressista pautado nos avanços trazidos pela Constituição e pelo artigo 169 daOrganização Internacional do Trabalho, mas muito contraditórios na sua prática. A grande contradição na área da autonomia se deu com a reestruturação da Fundação Nacional do Índio(Funai) sem considerar as comunidades indígenas. Portanto, o governo teve um discurso progressista, mas uma prática conservadora.
 ?Na prática, as reservas indígenas que foram criadas dentro dessa lógica rondoniana eram verdadeiros campos de concentração. Hoje, a concepção de terra indígena é diferente?


IHU On-Line ? Como o senhor avalia a orientação política da Funai hoje?
Saulo Feitosa ? Do ponto de vista teórico, a Funai tem feito uma inovação política e a fundamentação está em processo. Ela adota conceitos que o CIMI trabalha. O problema é que é um órgão criado durante o período militar, inclusive com herança no próprio quadro funcional desse tempo. A forma como ele está estruturado é marcada por um forte componente de corrupção, autoritarismo e isso é difícil de ser mudado. Na prática, hoje, identificamos setores que ainda mantêm essa prática antiga que defendia a tutela dos povos indígenas. A Funai procura fazer a mudança, mas ainda é um órgão bem complicado. Tem regiões do país em que os funcionários se movimentam da mesma forma como faziam durante o período militar.

IHU On-Line ? Está em curso ainda a ideia de indigenismo rondoniano?

Saulo Feitosa ? Ela existe entre funcionários da Funai. Ninguém nega a contribuição doMarechal Rondon num determinado momento. No começo do século passado tínhamos uma situação de Estado em que os índios eram considerados como nada. O Estado promovia o extermínio dos povos. A visão de Rondon se pautava pela preservação, criar reservas indígenas e tinha, até certo ponto, boas ideias. Mas na prática as reservas indígenas que foram criadas dentro dessa lógica rondoniana eram verdadeiros campos de concentração. Hoje, a concepção de terra indígena é diferente. Do ponto de vista étnico e cultural, as reservas rondonianas eram complicadas, porque os índios eram obrigados a viver em pequenos espaços e também a conviver junto de pessoas diferentes. Então, o indigenismo rondoniano teve uma contribuição importante na perspectiva da preservação, mas não tinha perspectiva de manter os índios autônomos. Era integracionista tutelar.
?O que entendemos como mazelas é resultado da não existência de um Estado de direito, no qual os índios tenham demarcadas as suas terras, como assegura a Constituição brasileira, além de que esses territórios sejam protegidos e tenham condições de oferecer sobrevivência?

IHU On-Line ? Qual é a força do indigenismo cristão e o neoliberal hoje no Brasil?
Saulo Feitosa ? Não existe um indigenismo cristão. Posso falar de um indigenismo missionário, mas a perspectiva desse indigenismo, em termos de presença, é forte. Essa perspectiva é vivenciada pelo CIMI e não tem qualquer pretensão de cristianizar os índios. Alguns povos foram cristianizados durante o processo inicial da Igreja no Brasil e esses povos nós tratamos como cristãos. No entanto, há povos com pouco e nenhum contato com o homem branco e que não têm relação com a religião cristã. Não temos a perspectiva de mudá-los. A nossa evangelização se traduz na defesa pela vida. O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural. Reconhecemos, valorizamos e estabelecemos o diálogo inter-religioso entre esses povos.

O indigenismo praticado pelo governo federal hoje é neoliberal. Ele tem interesse em transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas.

IHU On-Line ? O que o governo tem feito diante disso?

Saulo Feitosa ? 
O governo trabalha com uma perspectiva de que essas terras possam produzir de acordo com o interesse do capital. A proposta de governo em trabalhar com os povos indígenas hoje é neoliberal. O CIMI critica esse modelo. Temos experiências na América Latina que defendem o modelo do Bem-Viver em contraponto a essa perspectiva capitalista.
IHU On-Line ? Como essas duas ideologias indigenistas (rondoniana e cimista) dialogam entre si?
Saulo Feitosa ? A origem do indigenismo brasileiro é rondoniana. O indigenismo nosso reconhece a autonomia dos povos e dialóga com esse outro indigenismo através do apoio direto às comunidades na construção de sujeitos autônomos. Nosso trabalho é de assessoria e acompanhamento das comunidades para que elas possam construir esse processo autonômico e e para que possam dialogar com o governo. Exigindo deste uma política, portanto, satisfatória para esses povos. Nós damos apoio político e assessoria jurídica para que o Estado brasileiro cumpra aquilo que é um dever constitucional. Nosso trabalho se dá nessa perspectiva.
?A proposta de governo em trabalhar com os povos indígenas hoje é neoliberal. O CIMI critica esse modelo?
IHU On-Line ? Quais são as principais mazelas que acometem nossos índios? Que políticas públicas têm sido pensadas para oferecer uma vida digna às comunidades indígenas?
Saulo Feitosa ? As mazelas são muitas. Podemos começar pelas invasões aos territórios indígenas. Os indígenas que têm as terras demarcadas estão em áreas muito ricas e constantemente invadidas por interesses econômicos. Esse processo de apropriação e roubo é motivo de preocupação. Outra mazela é o esbulho da terra, a sua invasão feita pelos latifúndios, como é o caso do Mato Grosso do Sul. Desses problemas advêm todos os outros, com consequências trazidas para a área de saúde, com um índice de mortalidade infantil muito grande, além de desassistência e epidemias. O alcoolismo e as drogas já chegaram a muitas comunidades, sobretudo àquelas que não tiveram suas terras demarcadas e vivem à beira de estradas. A violência de vários tipos contra os indígenas ainda é imensa. O que entendemos como mazelas é resultado da não existência de um Estado de direito, no qual os índios tenham demarcadas as suas terras, como assegura a Constituição brasileira, além de que esses territórios sejam protegidos e tenham condições de oferecer sobrevivência.

O Estado brasileiro passou por um processo importante de mudanças na legislação, mas a
Constituição atual não tem nada a ver com o indigenismo rondoniano. Em 1988 é reconhecida a autonomia dos povos indígenas sob a perspectiva que lhes assegura continuar existindo de acordo com seus costumes e tradições, o que não era existente na legislação anterior, de 1973. Antes, era previsto que os índios deveriam ser integrados à nação, deixando de ser reconhecidos em sua identidade, como povos diferenciados culturalmente. Apesar da legislação ter avançado na prática, esse indigenismo traz essa contradição. Esperamos que essa situação seja superada e que, cada vez mais, os povos indígenas se tornem autônomos e reconstruam seus projetos de futuro.



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