4/1/2011 | ||||
Indigenismo missionário, uma defesa pela vida. Entrevista especial com Saulo Feitosa | ||||
?Em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico?. A análise é do vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Saulo Feitosa. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, ele acentua que o governo Lula teve ?um discurso progressista, mas uma prática conservadora?. A respeito da orientação política da Fundação Nacional do Índio (FunaiI), constata que a forma como esse órgão está estruturado ?é marcada por um forte componente de corrupção e autoritarismo. E isso é difícil de ser mudado?. Ele classifica o indigenismo praticado pelo governo federal como neoliberal, interessado em ?transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas?. Feitosa destaca que a evangelização do CIMI se expressa na ?defesa pela vida?. E completa: ?O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural?.Saulo Feitosa é graduado em Filosofia e História, com especialização em Bioética. Atualmente, ocupa o cargo de vice-presidente do CIMI. Desde 1980, vem trabalhando junto aos povos indígenas, acompanhando suas lutas pela recuperação étnica, territorial e cultural.Confira a entrevista. IHU On-Line ? Há uma disputa de poder no contexto da política indigenista atual brasileira? Saulo Feitosa ? O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por exemplo, não ocupa qualquer cargo na esfera governamental e não tem essa pretensão. O que existe no Brasil são concepções diferentes de indigenismo. No ano passado o Estado brasileiro completou 100 anos de indigenismo. O indigenismo começou com Marechal Rondon, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e que teve continuidade com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Então, temos no Brasil, um indigenismo oficial, governamental, o indigenismo missionário, que é o que nós fazemos, e o indigenismo das organizações não governamentais (ONGs). Há modelos de indigenismo diferentes, portanto. Mas em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico. Esse indigenismo tem como base a figura da tutela. O Estado é o tutor dos índios. E o outro modelo, que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que defende a autonomia dos povos indígenas. É esse indigenismo que o CIMI defende. IHU On-Line ? A política indigenista do governo Dilma pode ser diferente da forma como Lula tratou essa questão? Saulo Feitosa ? O governo Dilma seria uma continuidade do governo Lula. Este adotou um discurso progressista pautado nos avanços trazidos pela Constituição e pelo artigo 169 daOrganização Internacional do Trabalho, mas muito contraditórios na sua prática. A grande contradição na área da autonomia se deu com a reestruturação da Fundação Nacional do Índio(Funai) sem considerar as comunidades indígenas. Portanto, o governo teve um discurso progressista, mas uma prática conservadora.
IHU On-Line ? Como o senhor avalia a orientação política da Funai hoje? Saulo Feitosa ? Do ponto de vista teórico, a Funai tem feito uma inovação política e a fundamentação está em processo. Ela adota conceitos que o CIMI trabalha. O problema é que é um órgão criado durante o período militar, inclusive com herança no próprio quadro funcional desse tempo. A forma como ele está estruturado é marcada por um forte componente de corrupção, autoritarismo e isso é difícil de ser mudado. Na prática, hoje, identificamos setores que ainda mantêm essa prática antiga que defendia a tutela dos povos indígenas. A Funai procura fazer a mudança, mas ainda é um órgão bem complicado. Tem regiões do país em que os funcionários se movimentam da mesma forma como faziam durante o período militar. IHU On-Line ? Está em curso ainda a ideia de indigenismo rondoniano? Saulo Feitosa ? Ela existe entre funcionários da Funai. Ninguém nega a contribuição doMarechal Rondon num determinado momento. No começo do século passado tínhamos uma situação de Estado em que os índios eram considerados como nada. O Estado promovia o extermínio dos povos. A visão de Rondon se pautava pela preservação, criar reservas indígenas e tinha, até certo ponto, boas ideias. Mas na prática as reservas indígenas que foram criadas dentro dessa lógica rondoniana eram verdadeiros campos de concentração. Hoje, a concepção de terra indígena é diferente. Do ponto de vista étnico e cultural, as reservas rondonianas eram complicadas, porque os índios eram obrigados a viver em pequenos espaços e também a conviver junto de pessoas diferentes. Então, o indigenismo rondoniano teve uma contribuição importante na perspectiva da preservação, mas não tinha perspectiva de manter os índios autônomos. Era integracionista tutelar.
IHU On-Line ? Qual é a força do indigenismo cristão e o neoliberal hoje no Brasil? Saulo Feitosa ? Não existe um indigenismo cristão. Posso falar de um indigenismo missionário, mas a perspectiva desse indigenismo, em termos de presença, é forte. Essa perspectiva é vivenciada pelo CIMI e não tem qualquer pretensão de cristianizar os índios. Alguns povos foram cristianizados durante o processo inicial da Igreja no Brasil e esses povos nós tratamos como cristãos. No entanto, há povos com pouco e nenhum contato com o homem branco e que não têm relação com a religião cristã. Não temos a perspectiva de mudá-los. A nossa evangelização se traduz na defesa pela vida. O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural. Reconhecemos, valorizamos e estabelecemos o diálogo inter-religioso entre esses povos. O indigenismo praticado pelo governo federal hoje é neoliberal. Ele tem interesse em transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas. IHU On-Line ? O que o governo tem feito diante disso? Saulo Feitosa ? O governo trabalha com uma perspectiva de que essas terras possam produzir de acordo com o interesse do capital. A proposta de governo em trabalhar com os povos indígenas hoje é neoliberal. O CIMI critica esse modelo. Temos experiências na América Latina que defendem o modelo do Bem-Viver em contraponto a essa perspectiva capitalista. IHU On-Line ? Como essas duas ideologias indigenistas (rondoniana e cimista) dialogam entre si? Saulo Feitosa ? A origem do indigenismo brasileiro é rondoniana. O indigenismo nosso reconhece a autonomia dos povos e dialóga com esse outro indigenismo através do apoio direto às comunidades na construção de sujeitos autônomos. Nosso trabalho é de assessoria e acompanhamento das comunidades para que elas possam construir esse processo autonômico e e para que possam dialogar com o governo. Exigindo deste uma política, portanto, satisfatória para esses povos. Nós damos apoio político e assessoria jurídica para que o Estado brasileiro cumpra aquilo que é um dever constitucional. Nosso trabalho se dá nessa perspectiva.
Saulo Feitosa ? As mazelas são muitas. Podemos começar pelas invasões aos territórios indígenas. Os indígenas que têm as terras demarcadas estão em áreas muito ricas e constantemente invadidas por interesses econômicos. Esse processo de apropriação e roubo é motivo de preocupação. Outra mazela é o esbulho da terra, a sua invasão feita pelos latifúndios, como é o caso do Mato Grosso do Sul. Desses problemas advêm todos os outros, com consequências trazidas para a área de saúde, com um índice de mortalidade infantil muito grande, além de desassistência e epidemias. O alcoolismo e as drogas já chegaram a muitas comunidades, sobretudo àquelas que não tiveram suas terras demarcadas e vivem à beira de estradas. A violência de vários tipos contra os indígenas ainda é imensa. O que entendemos como mazelas é resultado da não existência de um Estado de direito, no qual os índios tenham demarcadas as suas terras, como assegura a Constituição brasileira, além de que esses territórios sejam protegidos e tenham condições de oferecer sobrevivência. O Estado brasileiro passou por um processo importante de mudanças na legislação, mas aConstituição atual não tem nada a ver com o indigenismo rondoniano. Em 1988 é reconhecida a autonomia dos povos indígenas sob a perspectiva que lhes assegura continuar existindo de acordo com seus costumes e tradições, o que não era existente na legislação anterior, de 1973. Antes, era previsto que os índios deveriam ser integrados à nação, deixando de ser reconhecidos em sua identidade, como povos diferenciados culturalmente. Apesar da legislação ter avançado na prática, esse indigenismo traz essa contradição. Esperamos que essa situação seja superada e que, cada vez mais, os povos indígenas se tornem autônomos e reconstruam seus projetos de futuro. |