Antropologia
Memórias Sertanistas comemora 100 anos de indigenismo no Brasil
O indigenismo rondoniano está vivo!
Realizou-se anteontem e ontem (27 e 28 de outubro), no SESC-Consolação, em São Paulo, o seminário Memórias Sertanistas, com a participação de alguns dos principais indigenistas e antropólogos brasileiros para comemorar os 100 anos de atividade e política indigenista republicana, desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910.
Este foi o único evento comemorativo do centenário do SPI/FUNAI. A própria FUNAI, com a atitude anti-rondoniana que domina sua atual direção, bem como as Ongs e organizações missionários ? e até a Associação Brasileira de Antropologia, ABA ? fizeram de conta de que não sabiam da efeméride. Lembremos que o Serviço de Proteção aos Índios teve como um dos seus principais quadros o antropólogo Darcy Ribeiro, que lá criou o Museu do Índio e foi presidente da ABA.
Ao que parece, as Ongs et alli acreditam que a política indigenista brasileira não merece ser comemorada, relembrada, rediscutida, atualizada e ampliada, conforme seu surgimento e desenvolvimento. A própria situação atual da Funai, de total descaso com os povos indígenas, é sinal desse desmerecimento. Mas, um dia, os índios terão seu acento, sua redenção na nação brasileira.
O evento começou na tarde do dia 27 com a mostra de dois importantes filmes jornalísticos sobre os primerios contatos com os índios Urueuauau, do cineasta inglês Adrian Caldwell. À noite a abertura deu-se com uma palestra de Elias Bígio, antropólogo que dirige a seção de índios isolados e de recém-contato da Funai, e com uma conversa descontraída entre os líderes indígenas Afukaká, do povo Kuikuro, do Alto Xingu, e Siridiwe Xavante, mediada por Felipe Milanez e Noel Villas-Boas, que também foram os curadores do evento.
O dia 28 foi o grande dia. Intenso, divertido, sábio. Aconteceu uma série de sessões com apresentação dos indigenistas Porfírio Carvalho, Odenir Oliveira, Afonso Alves da Silva, o Afonsinho, José Carlos Meirelles, Marcelo dos Santos e Altair Algayer. Cada sessão foi intermediada por um antropólogo ou jornalista, entre eles, Carmen Junqueira, Betty Mindlin, Mércio Gomes, Roberto Almeida, Noel Villas-Boas, Felipe Milanez, Silvo Danri.
Cada indigenista dava seu depoimento, contando sua vida de lutas e atribulações, todas heroicas pelos tempos que viveram.
Afonsinho, o gentil e intrépido sertanista de Altamira, que entre 1957 e 1966 ajudou a Francisco Meirelles a contatar diversos grupos Kayapó, sofrendo com suas mortes; em 1987 foi flechado duas vezes pelos Arara do rio Iriri, e a partir daí, com passagens no Vale do javari e entre os Waimiri-Atroari, passou a viver os 20 anos seguintes junto a esse mesmo povo, como seu amigo e assistente indigenista. Porém, em fevereiro de 2010, foi demitido pela atual direção da Funai, porque ?não tinha o perfil? do que essa direção acha relevante para o indigenismo que ela quer impor no Brasil, à revelia da experiência acumulada e da tradição renovada. Ao final do encontro, foi feito um documento exigindo que Afonsinho seja reconduzido ao seu posto junto aos Arara, para o bem do indigenismo rondoniano, dos índios que o amam, e da dignidade brasileira.
José Porfírio de Carvalho é o indigenista da audácia, da estratégia administrativa e da dignidade inquebrantável. Lutou em muitas frentes: pelos Guajajara no Maranhão, na criação da Administração da Funai no Acre (onde se dizia em 1975 que não havia índios), foi presidente da Sociedade Brasileira de Indigenistas (1979-81) e hoje dirige um dos mais belos programas indigenistas do país, com os índios Waimiri-Atroari e Parakanã. Esses programas nasceram em emulação à experiência implantada e vivida por 30 anos pelos irmãos Villas-Boas, no Parque do Xingu. Porém, Carvalho dá passos enormes adiante, estabelece metas, emula a participação dos índios para alcançar sua autonomia verdadeira em breve futuro. Eis um exemplo que se projeta na atualidade e para o futuro.
Odenir Pinto de Oliveira é um indigenista de muitas gerações. Seu avô foi companheiro de Rondon, e seu pai trabalhou com os Bakairi, onde recebeu a primeira visita de índios Xavante na região do rio Kuluene. É um indigenista que pensa sua vida duplamente, pensa como índio e como um intelectual brasileiro, e, quando chamado, age com a garra de um queixada. Praticamente nascido no meio dos Bakairi e crescido entre os Xavante, aprendeu ambas as línguas e vivenciou como poucos brasileiros a vida indígena. Fez o primeiro concurso da Funai, em 1969, lutou nos lagos do rio Autazes para que os Mura assumissem sua identidade étnica reprimida; batalhou desesperadamente e sob altíssimo risco de morte na ascensão dos Xavante em sua luta pela demarcação de suas terras; foi fundamental na ocupação que os Pataxó fizeram ao retornar à sua terra na região de Ilhéus.
José Carlos Meirelles é o doce, alegre e renitente paulista que se meteu pelos matos abandonando seus estudos de engenharia, e não arrenda pé de exercer sua vocação de indigenista. Fez o primeiro contato com um grupo Guajá, no alto rio Turiaçu, no Maranhão, pelos idos de 1973; viveu 35 anos no Acre entre os rios Envira e Iaco, alerta para os sinais de povos indígenas em estado de autonomia, sempre respeitando sua presença, dando sinais de boa vontade, mas sem procurar perturbá-los ou forçá-los ao encontro, sempre temido, do primeiro relacionamento interétnico. Meirelles hoje trabalha com os Yanomami, 19.000 deles, um mundo à parte no indigenismo brasileiro.
Marcelo dos Santos é o santista filho de comunistas e anarquistas que, como Francisco Meirelles, Noel Nutels, Darcy Ribeiro e Carlos Moreira, preferiram a vida vivida da igualdade e do amor fraternal encontrado em sociedades indígenas do que o sonho utópico de uma sociedade imaginada. Eis sua vocação político-indigenista, a qual foi vivida, desde 1983, com destemor incomparável, nas florestas devastadas e arruinadas de Rondônia. Marcelo dos Santos se diz o indigenista dos povos indígenas que sofreram os piores ataques genocidas da contemporaneidade brasileira. Os Kanoé, o ?homem do buraco?, um índio que vive só e recusa aproximação com os brancos, certamente o último remanescente de um povo arrasado por fazendeiros ignóbeis de Rondônia, são gente com quem ele lidou e ajudou a sobreviver, ou ao menos a viver com dignidade.
E como representante dos novos indigenistas, Altair Algayer, o Alemão, prosseguindo no trabalho de Marcelo, se entrega à vocação máxima de indigenista, cuidando dos 5 Kanoé sobreviventes, de dois remanescentes Kawahyb, visitando com a delicadeza própria do indigenista de coração o ?homem do buraco? para que ele, um dia, queira, de livre e espontânea vontade, se relacionar com o mundo que o cerca.
Sentimos a falta de outros valorosos indigenistas que trabalham com povos não contatados ou de recente contato, como Rieli Fransciscato e Antenor Amorim, para mencionar somente dois. São mais, e serão mais ainda, pois vem aí uma nova geração de indigenistas que darão continuidade à tradição rondoniana.
Aliás, falando em vocação, foi perguntado a vários indigenistas o que os teria levado a serem indigenistas. Invariavelmente as respostas vinham da vontade de estar na Natureza, o desejo de aventura e a busca por situações sociais de igualdade e alegria de viver. Todos admitiam que, uma vez picados pelo indigenismo, estavam entregues aos seus deveres, aos seus meneios, aos seus imponderáveis.
Como pano de fundo teórico e histórico desse encontro, o antropólogo Mércio Gomes proferiu a palestra ?A Tradição Indigenista Brasileira?, onde frisou que o indigenismo brasileiro nasceu da própria raiz formadora do Brasil. Tem como seu patrono o jesuíta Pe. Antonio Vieira, que não somente se opôs a tudo de mal que acontecia com os povos indígenas, mas também expressou o sentimento de que o Brasil deveria buscar a igualdade de todos pela dignidade reconhecida nos povos indígenas. Eis o sentido mais profundo do indigenismo brasileiro, meta a ser alcançada, sempre num horizonte de ações a cada dia mais conscientes e mais dedicadas.
Na história da formação do indigenismo brasileiro surgem outras grande figuras, algumas esquecidas. Mencionemos José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Comparando com os Estados Unidos, ao contrário do que estavam fazendo os americanos, àquele tempo, expulsando os índios das 13 colônias originais e dos novos territórios conquistados, José Bonifácio propôs que os índios deveriam ser respeitados e queria que se misturassem aos demais cidadãos. Certamente não é o que se quer agora, mas a concepção de que os índios fazem parte do Brasil e que devem ter seu espaço é algo de grande novidade para a época.
Na esteira de Bonifácio, surge o grande poeta maranhense, Antonio Gonçalves Dias, que, não somente louva o índio por suas virtudes reais ou imaginárias, mas também afirma que o Brasil só será uma grande nação quando os índios vierem a ser ?reabilitados? da condição social em que se encontravam. Gonçalves Dias projetou um futuro grandioso para o Brasil quando os índios tiverem seu espaço digno na Nação.
Na formação da República brasileira, a Igreja do Apostolado Positivista Brasileiro teve o grande papel no indigenismo ao propor que os índios deveriam ser considerados nações autônomas, que seus territórios deveriam ser chamados de ?estados autóctones americanos? e deveriam formar uma categoria à parte dos territórios dos estados, inclusive com alfândega própria. O Brasil seria uma grande nação republicana, laica, pela incorporação dos índios de um modo autônomo, preservando seu sentido de ser.
Por fim, surge, inspirado nessas ideias geniais, generosas e ultra-revolucionárias do positivismo brasileiro, o coronel, depois marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, que, ao fundar o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), declara que os índios são nações autônomas com as quais o Brasil deveria criar laços de amizade, não de imposição. Seu espírito de auto-sacrifício e dedicação ímpar é que inspiram o indigenismo rondoniano, pelo seguimento da máxima: ?Morrer se preciso for, matar nunca!?
Por essa injunção, muitos brasileiros morreram em sua vida de indigenista sem levantar armas contra os índios. Afonsinho e Meirelles são dois exemplos vivos.
O que dizer da vida e da obra dos três irmãos Villas-Boas? Muito e muito mais. Eles foram heroicos em sua dedicação aos índios do alto Xingu, e visionários ao defendê-los e protegê-los ao máximo do relacionamento com os não indígenas que estavam se aproximando de suas terras. Fizeram o Parque Nacional do Xingu a partir da ideia esplendorosa deles, juntos com Darcy Ribeiro, o próprio Marechal Rondon, cujo projeto original compunha um paralelograma territorial com cerca de 200.000 km2, que ia da margem esquerda do rio Araguaia até o rio Teles Pires, englobando terras dos Xavante, Bakairi, Juruna, Kayapo, Ikpeng, Suya, Beiço de Pau, Kaiabi, Apiacás e outros. Tal projeto, embora aprovado por Getúlio Vargas, não foi realizado em sua integridade. Ficou o Parque do Xingu, ao qual foram adicionadas as terras dos índios Suyá, Kaiapó, Juruna e Panara, que hoje constitui um território compacto de matas, cerrados e rios com mais de 140.000 km2. Cláudio e Orlando Villas-Boas, conforme já disse Darcy Ribeiro, compuseram as vidas mais incríveis de quantos brasileiros que já houve.
O Encontro dos indigenistas foi um primeiro passo para a recondução do indigenismo rondoniano ao palco político de um novo indigenismo que precisa ser criado. Mas não um indigenismo de fantoche, à base do oba-oba, do privatismo, da ilusão messiânica. O indigenismo rondoniano deve prosseguir respeitando sua tradição, a qual não é um simples poço de água parada, mas um rio caudaloso que cresce pela competência dos novos indigenistas, pela adaptação de sua filosofia aos tempos atuais, pela participação real dos índios, pelo diálogo e pelo amor. Eis a lição que foi tirada desse Encontro.
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