Antropologia
Na ditadura Funai espionava missionários -- III
A terceira parte da matéria de Rubem Valente, do jornal
Folha de São Paulo, trata de alguns telegramas enviados pelo grande indigenista brasileiro, Apoena Meirelles, que, por volta de 1980, trabalhava em Rondônia como delegado regional de Porto Velho e como sertanista que fez contato com diversos povos da região.
Segundo esses telegramas, Apoena comunica à Funai sua opinião negativa sobre a visão de religiosos do CIMI e de outras missões sobre a questão indígena, pede que lhes seja vetada a entrada em terras indígenas, alerta sobre o aborrecimento dos índios com a ausência da Funai nas terras indígenas e em um deles pede a demissão dos indigenistas José Carlos Meirelles, Terri Aquino e Antônio Macedo, supostamente por insubordinação.
Na sequência da matéria, o jornalista Rubem Valente entrevistou Terri Aquino, que não se lembrava de ter tido discussões com Apoena na ocasião para merecer essa comunicação.
Apoena Meirelles, filho de Francisco Meirelles, foi um grande indigenista brasileiro. Fez os primeiros contatos com diversos povos indígenas pelo Brasil, desde os Avá-Canoeiro e especialmente os Suruí, Zoró e Urueuauau, em Rondônia, e tinha opiniões muito firmes sobre diversos temas do indigenismo brasileiro. Um deles era sobre a presença de missionários em terras indígenas, algo que não combinava com sua visão política duplamente de comunista e de rondoniano. Embora amigo de muitos indigenistas que foram contra o domínio de militares na Funai, Apoena não participou ativamente do movimento dos indigenistas que bateram de frente com os militares a partir do final da década de 1970. Talvez isto tenha a ver com o tal pedido para a Funai demitir os indigenistas do Acre. Ou talvez o caso seja explicado por algo mais comezinho, como a indisciplina dos citados. Não sei. Eles poderão explicar melhor. De todo modo, é evidente que Apoena não é um delator, pois sua visão sobre as missões religiosas era conhecida de todos e o pedido de demissão de colegas indigenistas fazia parte da prerrogativa de suas funções de administrador de uma unidade indigenista.
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Sertanista pediu demissões em telegramas confidenciais Folha de São Paulo, Rubem Valente
Filho do sertanista Francisco Meirelles (1908-1973), referência no indigenismo, Apoena Meirelles (1949-2004) tornou-se também um inspirador das novas gerações de sertanistas. Nascido numa aldeia xavante, passou toda a vida adulta no trabalho indigenista. Em 2004, teve um fim trágico, ao ser baleado e morto numa suposta tentativa de assalto a um banco em Porto Velho (RO).
Antes de integrar o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), o pai de Apoena foi filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) e acabou preso em 1935 por envolvimento no levante comunista em Recife (PE). Apoena carregou do pai a imagem de "esquerdista" e teve atritos com os militares. Contava ter sido preso na passeata dos Cem Mil, no Rio, em 1968. Segundo seus ex-colegas na FUNAI, Apoena, que viria depois a presidir o órgão, foi demitido na gestão do coronel Paulo Moreira Leal (1981-1983).
O passado político de Apoena não impediu que ele ocupasse um cargo de confiança na FUNAI entre final dos anos 70 e início dos 80, o de delegado da 8ª Regional (RO e AC).
Os documentos da ASI (Assessoria de Segurança e Informações) da FUNAI, agora revelados, contudo, indicam que Apoena concordou diversas vezes com a ditadura em pelo menos dois pontos: detestavam o trabalho dos missionários religiosos em aldeias indígenas e os funcionários supostamente "insubordinados".
Num telegrama confidencial de junho de 1980, Apoena pediu à direção da FUNAI que demitisse sumariamente, por suposta "insubordinação", o antropólogo Terri Valle de Aquino, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior e o auxiliar artífice Antonio Luiz Batista de Macedo. Eles foram de fato demitidos dias depois.
Quase 30 anos depois, Aquino, que foi reconduzido à FUNAI na década de 90, só soube por um telefonema da Folha, há duas semanas, que seu superior havia pedido aos militares sua demissão. "Nunca discuti com Apoena. É uma completa surpresa para mim."
Aquino contou que na época da demissão estava ajudando os índios caxinauás a se organizarem e pedirem ao governo a demarcação de terras. "Eu não tinha problemas com Apoena, os índio que tinham."
Por telegramas, Apoena também pediu da FUNAI, em Brasília, que tomasse medidas enérgicas contra o Cimi e outras missões religiosas. Em 1980, despachou mensagem confidencial: "Encontrei índios revoltados com a ausência da FUNAI na região, completamente sob domínio do Cimi e de outras organizações religiosas".
Talvez o mais duro ataque de Apoena ao Cimi tenha sido o telegrama de 21 de março de 1982. Diz que os "elementos" do Cimi estimulavam "o ressurgimento de focos de tensão, causado pelo sectarismo e pela visão unilateral do problema do índio". Termina pedindo sinal verde para "vetar o ingresso do Cimi nas áreas indígenas".
O papel desempenhado por Apoena na FUNAI era de conhecimento dos indigenistas críticos do governo, conforme indica outro documento do acervo da ASI. O texto da peça de teatro "A Grilagem do Cabeça", que seria exibida no Amazonas e acabou censurada pela ditadura, trazia um personagem chamado Apoena, que, ao conversar com índios apurinãs, procura sempre defender a FUNAI. "Estou aqui enviado pelo presidente da FUNAI para resolver de uma vez por todas a situação", dizia o personagem. A ASI não gostou: "A peça é uma crítica sarcástica, falando sobre terra. (...) Fala do Apoena Meirelles. Percebe-se o veneno nas entrelinhas". (RV)
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