Antropologia
Cotas Raciais I
Cotas Raciais
Parte I ? Imitando os Estados Unidos
Mércio Gomes
Antropólogo, professor da UFF
O Brasil perdeu confiança em si mesmo! Eis a conclusão que podemos tirar diante da criação de cotas raciais para facilitar a entrada de negros e pardos na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Os desdobramentos dessa decisão, agora em vias de se tornar nacional e provavelmente ser aplicada nas universidades federais, como política social do novo governo, poderão produzir no Brasil aquilo que nunca tivemos, mas que os Estados Unidos têm com muita tradição: o espírito segregacionista. Resta-nos discutir se o preço da segregação das chamadas ?raças? vale a pena para o Brasil, ou se não haveria outra solução que ajudasse a diminuir o fosso de privilégios entre as classes médias tradicionais e o povão brasileiro, mais negro e mais caboclo.
Discutir raça e preconceito no Brasil não é fácil nos dias de hoje. A tendência do brasileiro é evitar o assunto porque a ideologia predominante que diz que o brasileiro não é racista, que vivemos numa ?democracia racial?, já não convence mais ninguém. Entretanto, dizer que o Brasil é racista, como se fora os Estados Unidos, é outra falácia. Então, somos o quê? Uma nova atitude de franqueza e auto-condenação é nos considerarmos hipócritas. Somos racistas, fingimos que não somos, mas na hora H discriminamos a quem consideramos de pele escura ou a quem nos parece abaixo de nossa condição social. Não é mole para sua auto-estima um povo se considerar ao mesmo tempo racista e hipócrita!
O sistema de cotas para ingresso na UERJ parece ser uma adaptação do modelo americano, chamado ?Ação Afirmativa?, criado no início da década de 1970, com o intuito de compensar as condições negativas das minorias raciais nos Estados Unidos em relação à maioria dos brancos. O princípio que está por trás dessa ação reconhece o caráter discriminatório da cultura americana sobre suas minorias ? negros, índios e descendentes de imigrantes mexicanos, que agora são chamados de afro-americanos, americanos nativos e americanos hispânicos ? e considera que só pela força da lei é que esta relação de desigualdade poderia ser revertida. Assim, todas as instâncias públicas e privadas foram obrigadas ou estimuladas a dar oportunidades (de educação ou de trabalho) para essas minorias por um sistema de cotas equivalente às suas proporções demográficas. Assim, os afro-americanos, que compõem uns 12% da população geral americana, teriam direito a 12% das oportunidades.
O programa Ação Afirmativa foi implantado em toda a nação. Ao cabo de 30 anos criou em suas minorias raciais uma classe média que soube aproveitar as chances e hoje se perpetua como receptora das cotas. Filhos de afro-americanos que foram compensados no passado hoje recebem a mesma compensação. Os demais, os segregados em guetos e estiolados na pobreza, continuam a ver navios. Por outro lado, a segregação racial continua a existir nos Estados Unidos, agora não mais oficialmente, mas na prática cultural e nas atitudes. Exceto nas cidades mais cosmopolitas, nenhum branco vai a um bar freqüentado por afro-americanos em Nova Orleans, nenhum hispânico ousa entrar num bar de brancos no Texas, nenhum afro-americano distraidamente entra num bar de brancos descendentes de irlandeses em Boston. Não que saía briga de cara, mas não existe ambiente para confraternização. O desconforto inter-racial é permanente, não há papo entre brancos e negros, e quando a competição econômica se acirra, não raro explode em violência.
Os americanos tentaram o sistema de cotas por um motivo principal. Lá eles sabem quem é branco e quem é afro-americano ou hispânico ou americano nativo. Biologicamente, basta ter uma bisavó de alguma minoria racial para que alguém se considere membro do grupo. Mas, na verdade, a segregação racial é muito mais cultural. Uma pessoa é afro-americana porque se segmenta culturalmente como tal; nem precisa ser descendente, basta comportar-se como tal. Um afro-americano é reconhecido de longe pelo jeito de andar, pelo tom de voz, pelo gestual, pelo gosto de vestir, etc. Considerando-se que mais de 95% de cada grupo racial só se casa entre si, o que temos verdadeiramente é um sistema social de castas. O sistema de cotas, a despeito de suas intenções, vem perpetuando essa realidade americana.
E o Brasil? Deveremos seguir esse edificante exemplo americano? Haverá outros modos de trabalhar nosso racismo hipócrita? Uma vez mais, tudo depende da imaginação e da criatividade política. Eis o nosso desafio, o qual, modestamente, tentaremos dar nossa contribuição nos próximos artigos.
Publicado na Tribuna de Petrópolis, em 18 de fevereiro de 2003
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