Antropologia
Belo Monte: um etérno "déjà vu"?
Foi publicado recentemente uma matéria no jornal New York Times sobre a construção do complexo hidroelétrico Belo Monte. A notícia tem início com a história de Raimunda Gomes da Silva, que se deslocou para Altamira devido à construção de outra obra semelhante. Essa senhora, segundo a matéria, vive agora um constante "déjà vu".
Na verdade, assim como ela, todos nós vivemos esse etérno "déjà vu". Quantas famílias já não foram deslocadas de suas casas, do lugar onde criaram os seus filhos e foram criados pelos seus pais, onde apreenderam os valores da vida? É claro que a submissão ao "interesse nacional" (que neste caso pode ser traduzido por "interesse das empresas", tendo em vista que a óbra representa um fracasso da engenharia humana), nunca teve um impacto tão direto e cruel na vida dos habitantes das grandes metrópoles, que podem continuar descansando em suas salas de estar, vendo o mundo a partir do vidro incolor de suas janelas. Nossa vida continua sem maiores abalos. Não perdemos e não ganhamos, pelos menos não imediatamente.
O problema é que essa "conta" será cobrada no futuro para nós e no presente para as pessoas diretamente afetadas pela construção de Belo Monte. Talvez seja por isso que o habitante "classe média" das grandes metrópoles não consiga se comover com a situação dos índios e ribeirinhos que terão suas vidas alteradas e dilaceradas pela imposição da ganância e do descaso dos grandes empresários e seus interesses econômicos. Será a vida deles que nunca mais será a mesma. O peixe do dia a dia... O rio que deixa sua marca na paisagem, onde outrora e hoje ainda vivem os antepassados, terá seu fluxo alterado para sempre, inundando não somente a terra, mas a memória dos seus habitantes. A vida deles é que está em jogo. A nossa já foi perdida há muito tempo... Já não sabemos o significado de viver no mundo desde que trocamos as grandes paisagens da natureza pelo ambiete artificial dos shopping centers... Estar no mundo, imersão-revelação dos que vivem conectados com seu meu ambiente é para nós uma memória antiga... Trocamos há muito tempo atrás a vida na natureza pela existência virtual dos grandes complexos urbanos, com sua violência visual, auditiva... E agora queremos transformar a vida de Raimunda da mesma forma que outrora a vida dos nossos antepassados foi transformada pela força da "economia". Essa "economia de humanidade" que transformou a natureza em um "objeto". Objeto que busca escapar da prisão e, desta forma, se torna uma ameaça a vida virtual?
A história se repete novamente. Não apreendemos com os exemplos passados, com as vidas e as paisagens alteradas, dilaceradas, corrompidas, interrompidas para sempre. Não apreendemos nada por que não vivemos! E é só por isso que assistimos ao autoritarismo de um Governo que acredita que o futuro da humanidade são as fábricas e o sonho capitalista. Estaremos diante de um marxismo pós-moderno?
Dona Raimunda sabe que a vida é feita de deslocamento. Quantas vezes antes os seus antepassados não tiveram que migrar devido à violência imposta pelos governos? Mas será que a terra irá se desdobrar para sempre no infinito dos tempos? Será que nós, habitantes das grandes cidades, teremos também a mesma capacidade de se deslocar no tempo e no espaço e recomeçar tudo de novo, do zero? Será que algum dia vamos conseguir nos libertar deste agora quase etérno escafandro virtual ao qual fomos submetidos? Talvez esse questionamento seja a chave que interliga a vida de Dona Raimunda com a nossa... Pena que estejámos tão desconectados para perceber os sinais do tempo...
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