A questão energética e o modelo arbóreo de desenvolvimento
Antropologia

A questão energética e o modelo arbóreo de desenvolvimento


Na postagem anterior, mencionei a configuração arbórea do nosso modelo de desenvolvimento e, por efeito, da nossa rede de geração e transmissão de energia elétrica, cujos principais nódulos de consumo estão concentrados em grandes metrópoles localizadas na estreita faixa litorânea do território brasileiro. Essas regiões foram historicamente privilegiadas pelas políticas publicas de caráter desenvolvimentista, tornando-se centros de atração de mão de obra/pessoas.

Esse mesmo modelo de desenvolvimento foi utilizado, a partir da década de 1960, para "povoar" e "desenvolver" outras regiões do Brasil, como o centro-oeste e a Amazônia Brasileira, demonstrando-se um verdadeiro desastre social e ambiental.

Para não parecer vago nas minhas afirmações, vou apresentar aqui alguns dados que confirmam essa ideia.

Distribuição da População Brasileira - 2000


Esse quadro de distribuição populacional se manteve inalterado até a última pesquisa realizada pelo IBGE, em 2008:


Esse outro mapa demonstra claramente que a concentração populacional nas grandes metrópoles da faixa litorânea aumentou ainda mais nos últimos anos:



Conforme podemos ver nos mapas, a maior parte da população brasileira está concentrada em uma estreita faixa litorânea localizada entre o nordeste e o sul do país. Em alguns pontos desta faixa, percebemos uma densidade interiorana um pouco maior (na altura da região sudeste), mas a maior parte da população está concentrada no litoral, em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Salvador etc. As exceções mais expressiva são Brasília (DF) e Belo Horizonte, localizadas no interior do território. Na região norte, temos grandes centros populacionais nas cidades de Manaus e Belém,  que se transformaram em grandes metrópoles nas últimas décadas do século XX, seguindo o mesmo padrão de concentração populacional e desenvolvimento das demais regiões do país. No geral, no entanto, a imagem acima nos permite visualizar uma estreita faixa territorial extremamente populosa, correspondente a parte mais escura do mapa (cores marrom e preto), onde estão localizadas as grandes metrópoles brasileiras.

Como é de amplo conhecimento, houve uma transformação radical da distribuição populacional brasileira na segunda metade do século XX, constituindo um quadro com predomínio da população urbana (correspondente a 80% do total). Ou seja, de 8 em cada 10 brasileiros vivem em cidades. Por outro lado, o mapa acima demonstra que essa população urbana não está distribuída homogeneamente no território, mas concentrada na estreia faixa litorânea, principalmente, na periferia das grandes metrópoles.

Esse mapa de distribuição populacional é o efeito (e não a causa) de séculos de políticas públicas que adotaram um modelo de desenvolvimento centralizado no padrão urbanista das grandes metrópoles do sul, sudeste e nordeste do país. Foram essas regiões que se desenvolveram mais, com a construção de uma infra-estrutura de rodovias e serviços de toda ordem. Ondas de imigração proveniente de todas as regiões do Brasil se deslocaram para cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte durante a década de 1960, em busca de empregos nas fábricas. Por outro lado, esse movimento foi acompanhado por uma migração regional das cidades do interior para as grandes capitais e, por outra complementar, das regiões interioranas dos municípios para os centros urbanos locais. Enfim, a população se urbanizou radicalmente, mas de forma muito mais intensa nas grandes capitais litorâneas, onde se encontra o maior índice de habitantes por metro quadrado. Esse contexto de intensa migração e urbanização teve início na década de 1940/50, dando origem à atual configuração populacional brasileira.

O efeito social da concentração urbana todo mundo conhece muito bem: altos índices de desigualdade econômica; uma infra-estrutura completamente inadequada e mal distribuída, com a formação de verdadeiros "bolsões" de miséria nas grandes periferias; e outros tantos efeitos negativos de séculos de 'desenvolvimento' sem qualquer planejamento urbano.

Essa questão foi analisada pelo sociólogo José de Souza Martins, para quem o problema da exclusão social reside exatamente na ausência de políticas de inserção dessa população na emergente sociedade capitalista, a não ser como "consumidores" e "produtores" de mercadorias: "no fim, famílias se desorganizam, filhos são abandonados. O mundo camponês da ordem vai cedendo lugar a um mundo de desordem, incerteza, insegurança. Não por acaso, em vários países as migrações com o tempo aparecem associadas à delinquência e à criminalidade. E à violência. Em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador, os bairros em que há mais linchamentos são justamente os bairros periféricos e sobretudo os bairros 'novos', os de ocupação mais ou menos recente por migrantes quase sempre originários do interior. As favelas, que estão na mesma situação, têm ocorrências parecidas" (A sociedade vista do abismo, p. 145).

O problema das migrações rural-urbano, portanto, não reside em formas de exclusão social, mas na ausência de políticas públicas de inclusão dessa 'nova' população urbana na sociedade, a não ser pelo viés produção/consumo de mercadorias: "Onde está o problema? Pra mim o problema está nesse fato social problemático: o tempo, a demora para reincluir o excluído está ficando cada vez mais longo. Cada vez mais, demora mais a reinclusão do excluído. Quem são os excluídos numa sociedade como a nossa? Em princípio os camponeses, os trabalhadores rurais, os expulsos da terra" (Ibidem, p. 122). Sim, são os 'expulsos da terra' - na maior parte das vezes, devido à construção de mega-obras como Belo Monte - que vão integrar a população das grandes favelas urbanas, compondo uma classe de trabalhadores não-especializados cujo único meio de inserção no capitalismo é através da produção e consumo de mercadorias de segunda mão.

Inserção no mercado, mas exclusão ou inserção submissa na sociedade, eis a fórmula que tem vigorado no modelo de desenvolvimento arbóreo que predomina no Brasil, pelo menos, desde a década de 1950. É essa fórmula que tem sido reproduzida pelos nossos governantes, não importa se de direita ou de esquerda.

Nesse quadro geopolítico, a região norte (Amazônia) e centro-oeste foram historicamente abordadas pelo poder público a partir de duas perspectivas: por um lado, como fornecedora de matéria-prima (minérios, energia hidroelétrica, biodiversidade etc.); por outro, como território de expansão do mesmo modelo desenvolvimentista implantado na faixa litorânea. Pelo menos desde a inauguração da chamada "Marcha para o Oeste", ainda sob o comando do Estado Novo de Vargas, ondas de migração do sul para a região centro-oeste foram mobilizadas por uma ideologia de "conquista" e "povoamento" de um território considerado, erroneamente, como desabitado.

Na década de 1960/70, essas regiões foram alvo de grandes obras de infra-estrutura nunca concretizadas de fato (como a Transamazônica), por iniciativas de bioprospecção mineral e por políticas de povoamento orientadas pela intervenção autoritária do Estado. Mais recentemente, essa mesma política desenvolvimentista deu origem às "frentes de expansão" no sudeste do Pará, onde se encontra o chamado "arco do desmatamento".

Essas políticas visam, em linhas gerais, transportar o modelo instalado na faixa litorânea para o interior do Brasil, resultando em efeitos sociais e ambientais desastrosos. De fato, as regiões norte e centro-oeste nunca foram incentivadas a percorrer o seu próprio caminho rumo a um desenvolvimento local e sustentável, baseado nas potencialidades genuínas dessas regiões. Pelo contrário, foram sempre tratadas como um "território vazio" (de pessoas e conhecimentos), motivo pelo qual os militares incentivaram a chamada "povoação" dessas regiões a partir do deslocamento de pessoas do sul e nordeste do país, intensificando ainda mais os focos de conflito socioambiental.

Vistas sob a ótica do desenvolvimento arbóreo implantado na faixa litorânea, as regiões norte e centro-oeste foram sempre percebidas como um "problema social" ou "obstáculo" ao chamado "desenvolvimento nacional"; e suas especificidades e especialidades nunca foram reconhecidas pelo governo federal como um caminho viável para outro modelo de desenvolvimento, muito mais sustentável a médio e longo prazo.

Distribuição territorial do consumo de energia elétrica

Esse modelo de desenvolvimento com topologia arbórea resultou em uma distribuição e consumo desigual de energia elétrica pela população brasileira. Conforme dados da última pesquisa realizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica, em 2002, mais de 72% do consumo de energia elétrica estava concentrado nas regiões sul e sudeste do Brasil. Quando somamos o consumo da região norte, esse índice chega próximo a 90%. Como a população está concentrada hegemonicamente nas grandes metrópoles e capitais, podemos deduzir que boa parte desse consumo é urbano, em grande parte de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza etc.


Esse quadro de consumo desigual da energia elétrica pode ser visualizado a partir do mapa que apresenta a visão noturna do Brasil (visto a partir de um satélite):

     

                                        Visão Noturna - Brasil (Satélite)

O mapa acima demonstra claramente que o consumo de energia está concentrado nas regiões sul, sudeste e nordeste, principalmente, nos grandes centros urbanos. Essa configuração é o efeito da reprodução, durante os últimos séculos, de um modelo arbóreo de desenvolvimento focado nas grandes metrópoles da estreita faixa litorânea do território brasileiro; e da tentativa (fracassada) de transportar esse mesmo modelo para as demais regiões brasileiras.

Para sustentar essa sociedade litorânea e urbana, foi preciso conceber um sistema de geração de energia elétrica que tem nos rios da região norte e centro-oeste a sua fonte principal. Essa energia é gerada, em grande parte,por grandes hidroelétricas, sendo depois distribuída para os centros urbanos, conforme demonstra as duas figuras abaixo:




O mapa acima apresenta claramente a rede de distribuição de energia elétrica no território nacional, com os centros de geração de energia localizados ao longo de uma rede hidráulica que tem origem no norte do Pará e se estende até o norte do Rio Grande do Sul (Usina de Itaipu), e redes de distribuição de energia que se estendem (de forma segmentar e hierárquica) do interior até a faixa litorânea. Também podemos notar facilmente que boa parte da energia gerada no país provem de usinas hidroelétricas, o que é o efeito da reprodução de políticas públicas que sempre privilegiaram o modelo arbóreo de desenvolvimento, dando origem a um poderoso circuíto econômico e financeiro de lucro, engenharia social e cientifica, criado durante o século XX em torno da construção, manutenção e administração desses grandes empreendimentos. Com o passar do tempo, essa rede produtiva - o chamado "setor hidroelétrico" - transformou-se em um verdadeiro cartel de interesses políticos e econômicos, com sede no Congresso Nacional, nos altos escalões do poder judiciário e nos gabinetes dos ministérios do poder executivo nacional.

Por isso, quando estamos discutindo a construção de obras como Belo Monte, não se trata apenas em ser contra ou a favor do desenvolvimento. Esse raciocínio é demasiadamente simplista e não consegue perceber o que está realmente em jogo na questão da construção desta hidroelétrica.

O que está em questão aqui é a discussão de qual tipo de desenvolvimento que queremos para o Brasil? Vamos seguir o mesmo modelo de desenvolvimento que se demonstrou, a longo prazo, completamente insustentável em outros países e regiões? Vamos traçar esse caminho exatamente no momento em que pesquisadores do mundo inteiro apresentam dados inquestionáveis sobre a total falência e insustentabilidade desse modelo arbóreo de desenvolvimento? É isso que queremos para o Brasil?

Não seria mais producente buscar traçar o nosso próprio caminho rumo ao desenvolvimento? Um desenvolvimento mais humano, democrático, descentralizado e diversificado do ponto de vista cultural e ambiental só pode ser construído quando conseguirmos visualizar que outras fontes de geração de energia elétrica só são possíveis em outros modelos de desenvolvimento econômico e social. Quando conseguirmos imaginar essa outra sociedade, mais humana, diversificada e solidária, as alternativas vão surgir naturalmente, como resultado de um pensamento que constrói e projeta um mundo possível quando imaginável.



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