A Funai aos Quarenta Anos: Parte 2
Antropologia

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 2


A Funai aos Quarenta Anos: Parte 2

Mércio P. Gomes

Vamos recordar nos próximos dias algumas passagens importantes da Funai. Quem quiser participar, basta entrar com seus comentários logo abaixo de cada texto.

Hoje vamos falar sobre a história de criação, os propósitos originais da Funai e seus anos durante a ditadura militar.

A Funai foi criada em 5 de dezembro de 1967 no mesmo dia em que foi extinto o Serviço de Proteção aos Índios.

Por que se criou um órgão novo, acabando-se com aquele que fora criado por Rondon? A resposta que os militares deram foi de que o SPI estava decadente e tinha se tornado corrupto. Nos anos anteriores, como era de praxe no início da ditadura militar, havia sido instalado uma comissão para investigar a corrupção no SPI e diversos crimes e delitos haviam sido detectados. Delitos administrativos, sinais de desvio de recursos, desleixo, comprometimento de funcionários com interesses antiindígenas, e até, pasmem, participação de funcionários em crimes contra os índios. No ano de 1967 chegou a lume o chamado Massacre do Paralelo 11, que teria acontecido em 1965. Esse massacre fora perpetrado por um bando de capangas financiado por um seringalista de Mato Grosso contra uma aldeia cinta-larga. Bombas foram jogadas de um avião na aldeia e depois o bando a invadiu por terra matando todos presentes, inclusive uma mulher que teria sido esquartejada pelo meio. Uma fotografia com uma mulher indígena presa pelos pés, de cabeça para baixo, ladeada por dois brancos com facões, foi publicada em muitos jornais pelo Brasil e mundo afora. A foto é chocante e dá a entender que os facínoras a teriam aberto ao meio em seguida. Constava que uma pessoa do SPI teria tido participação direta nesse massacre. Essa história foi filmada na década de 1980, comercialmente, por Zelito Viana com o título Avaeté. Outro incidente estranho foi o incêndio das dependências do SPI que queimou muitos documentos administrativos e, pior, grande parte do arquivo dos 57 anos de existência do órgão. Ninguém soube como se deu o incêndio, se foi acidental ou proposital. As duas versões correm soltas. Só anos mais tarde uma parte dos arquivos do SPI seria resgatado pelo antropólogo Carlos Moreira, peregrinando pelas velhas delegacias regionais do órgão. Entre as pessoas investigadas estavam ilustres sertanistas como Chico Meirelles (que, inclusive, chegou a ser preso), Cícero Cavalcanti e os irmãos Villas-Boas, o médico Noel Nutels, que havia sido o último diretor do SPI no regime democrático, Darcy Ribeiro, que criou o Museu do Índio, e outros. Os militares faziam seus inquéritos e soltavam as notícias que lhes eram convenientes.

Na verdade, o SPI foi extinto não necessariamente porque haveria desvio de verbas ou desleixo administrativo, mas porque os militares o temiam. Temiam sua história de defesa dos povos indígenas, temiam a imagem que havia criado no imaginário brasileiro, sua contribuição à institucionalização de uma política de proteção e assistência aos povos indígenas, e temiam os sertanistas e antropólogos que lá trabalhavam. Afinal, um deles já havia sido indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Assim, quiseram criar um órgão que lhes obedecesse, seguisse suas diretrizes, e tivesse como propósito fundamental apressar o processo de assimilação dos povos indígenas. Quer dizer, em suas origens, a Funai nasceu para se contrapor à imagem positiva, mesmo que esmaecida, do SPI. Por isso era preciso destruir essa imagem e partir para a criação de uma outra.

O espírito inicial de diversos fundadores da Funai era de fazê-la uma fundação auto-suficiente. Isto é, que fosse, ao menos parcialmente, financiada com os recursos que pudesse desenvolver e gerir. Daí que arrendar terras indígenas seria aceitável, tal como se fizera nos últimos anos do SPI, no Panará e em outros estados, com o arrendamento de terras para plantio ou na concessão de licenças para instalação de serrarias para aproveitamento de madeira. Isto ocorreu especialmente em várias terras dos Kaingang, mas também em outros lugares, como no Maranhão. A idéia de auto-suficiência é antiga e remonta ao Diretório de Pombal, onde os diretores eram pagos com a renda obtida pelo trabalho dos índios. É impressionante que ela tenha sido ressuscitada duzentos anos depois, o que demonstra que, se o brasileiro não tem memória, como dizem, adora repetir os erros do passado. Entretanto, tal idéia escabrosa acabou sendo descartada. Os militares viram que, sem o apoio dos sertanistas, nenhum órgão seria criado. Daí é que buscaram seu apoio ou conivência e, assim, tiveram que fazer mudanças essenciais na estruturação do órgão, as quais, ao final, não iriam ser muito diferentes do órgão anterior.

A Funai foi instalada no Ministério do Interior, recém-criado para ajudar a promover o desenvolvimento do interior do país. Péssimo sinal. Os primeiros dois anos da Funai transcorreram lentos, com poucos recursos, e com mudanças pontuais, em geral de funcionários antigos por novas pessoas, especialmente militares de baixa patente, fiéis aos princípios da ditadura. Em várias delegacias houve muita perseguição contra antigos funcionários e diversos preferiram ficar no Ministério da Agricultura a passar para o novo órgão.

O primeiro presidente da Funai foi, surpreendentemente, um civil, José Bezerra Queiróz, um jornalista pernambucano ligado aos militares do seu estado. Não conseguiu fazer grandes coisas, mas deu início aos estudos que resultariam na formulação do Estatuto do Índio, promulgado como lei em 1973. Procurou abrir um diálogo com os sertanistas, inclusive prestigiando Chico Meirelles, que fez o contato com os Cintas-Largas, em Rondônia. Em seguida seriam contatados os Suruí e os Zoró e diversos outros povos de Rondônia, inaugurando o período mais intenso de contato com povos autônomos. O segundo presidente foi outro pernambucano, o general Jerônimo Bandeira de Mello, que ficou durante todo o período Médici até dar posse ao general paulista Ismarth de Araújo, que foi o mais longevo dos presidentes da Funai, ficando durante todo o período do presidente Geisel (1974-79). Bandeira de Mello ficou famoso por sua truculência, mas foi no seu período que a Funai começou a receber verbas mais substanciais, a criar novas delegacias e postos indígenas e a fazer os famosos cursos de indigenismo, que iriam produzir a nova geração de indigenistas. O primeiro curso de indigenismo foi realizado em 1971 e contou com a participação de diversos professores da UnB. Creio que ainda há indigenistas na ativa deste ano. Nos anos seguintes, e até 1985, quando se deu o último, os novos indigenistas iriam ser formados do melhor modo possível que a antropologia brasileira era capaz de fazer naquele momento.

O general Ismarth foi o militar que mais dignidade deu ao órgão. Era capaz de diálogo com os velhos sertanistas e com os novos indigenistas e procurava melhorar as condições de trabalho dos funcionários. Recebia as delegações indígenas com respeito e impunha nos círculos militares e desenvolvimentistas do Ministério do Interior uma certa imagem positiva da Funai. Entretanto, estamos falando do tempo da ditadura, quando um militar era tratado com reverência e medo. Assim, qualquer atitude não negativa já era vista como positiva. De qualquer modo, muitos indigenistas guardam um boa lembrança daquela época, mesmo porque foi o máximo em que chegou a Funai em termos de salários e condições de trabalho.

Ser indigenista e trabalhar no período militar pode ser visto como um fato heróico. Dedicação a toda prova e a toda hora. Tempo das grandes demarcações dramáticas dos índios Xavante, dos Guajajara, dos Makuxi e Wapixana. Tempo dos primeiros contatos com povos autônomos que resultavam em grandes mortandades. Tempo da construção da Transamazônica e da Perimetral Norte. Tempo também das falcatruas para diminuir terras indígenas, tempo de aliciamentos de traidores, de dedos-duros, de burocratas safados. Tempo do surgimento de Mário Juruna e da mística dos Xavante, como um povo resoluto e inflexível nos seu direitos.

A população brasileira começa a olhar os índios com uma olhar diferente. Há algo surgindo que ninguém ainda entende. Pensa-se que são os últimos suspiros dos povos indígenas. Na verdade, é o seu renascimento.



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