Antropologia
"Gentileza gera Gentileza", uma filosofia da dádiva
A frase do século XX: "Gentileza gera gentileza". A lógica da dádiva em linguagem-grafite, no muro da grande metrópole, propõe a imersão e o envolvimento com tudo aquilo que está ao nosso lado, que exige nossa atenção e cuidado. Estamos todos conectados em um único sistema "vivo". 'Cuidar', fazer a dádiva circular, dar atenção, envolver-se no mundo, eis o grande segredo da vida tão bem resumido por esse nobre filósofo das ruas.
Para estar 'vivo' não basta ter um corpo com órgãos, é preciso muito mais do que isso. Para estar 'vivo' realmente é preciso ter uma atitude existencial e saber estar-conectado, deixar-se levar pelo fluxo da vida... Desde o momento em que nascemos, já no primeiro grito de vida, anunciamos a nossa presença. A partir daí, jamais ficamos sozinhos, nem mesmo na morte. Estar 'vivo', habitar o mundo, tudo isso já pressupõe estar-com-os-outros, deixar-se afetar e afetar os demais. A presença exige a atenção e a atenção exige o cuidado. O gabinete da mente e do indivíduo enquanto célula autônoma é uma grande ilusão. O Ser enquanto presença é sempre um Ser-no-mundo. Mesmo as atividades mais abstratas como escrever, pensar, compor, fazem parte do fluxo da vida e do constante exercício de imersão no mundo. Viver é sempre conviver. Mesmo quando cultivamos nossos pensamentos mais íntimos sem revelá-los, mesmo quando mantemos os nossos segredos longe da curiosidade dos outros, mesmo assim, ainda é com-os-outros (ou em relação aos outros) que fazemos silêncio ou mantemos segredo. Não importa o quanto sejamos individualistas, a reciprocidade e a dádiva é um efeito do estar-vivo-e-conectado com o mundo.
Quando agimos com gentileza, recebemos em troca mais gentileza (mesmo que não seja na mesma proporção), num circuíto virtuoso de "cuidado" e "atenção" que torna o viver lado a lado um exercício sensível de compaixão. Mesmo quando não somos correspondidos, essa postura, quando acompanhada de uma disposição feliz, segura e sincera, gera incomodo e inquietude mesmo naqueles que respondem com violência ou ignorância. Talvez esteja aí o ponto de partida para uma nova jornada: a oportunidade de uma conscientização e de uma sensibilidade física de estar em contato, de estar vivo, de afetar e ser afetado pelos outros, de compartilhar e ser compartilhado, de modificar e ser modificado.
"Gentileza gera Gentileza", dizia o poeta das ruas, com sua barba branca e seu olhar sincero.
Existe uma verdade nessa sentença que não é de ordem racional, mas emocional. Essa frase sintetiza uma filosofia-vida que emerge da experimentação do cotidiano e da convivência com os outros. Uma filosofia mundana baseada simultaneamente no entendimento da lógica da reciprocidade como base da sociedade e na projeção subsequente desse entendimento na forma de "um saber-viver-com-os-outros". Uma proposição solidária e altruísta como esta é facilmente interpretada como "romântica", "idealista" ou qualquer coisa do gênero, quando de fato se trata quase de uma tese fisiológica.
De fato, o pressuposto de que o indivíduo é auto-suficiente e auto-gestionável e de que o
cogito se basta a si mesmo parece partir de um racionalismo messiânico, pois tudo na vida mostra o quanto estamos genuinamente conectados, entrelaçados em associações, inseridos em extensas redes sociotécnicas, sempre em relação aberta com a "finitude" e a "materialidade" dos conhecimentos. O fato é que desde o primeiro grito e da primeira palavra pronunciada, estamos sempre
em relação com um mundo de coisas e pessoas com os quais nos encontramos essencialmente envolvidos. Mesmo quando buscamos 'ignorar o outro', existe algo no ignorar que leva em conta o ser ignorado como parte da facticidade do "Ser-no-mundo".
O filósofo Gentileza percebeu isso desde sua infância. Mas foi a partir de um acontecimento trágico que ele recebeu o "chamado" para a missão de pregar a "gentileza" como uma atitude diante da vida: o trágico incêndio de um circo, em Niterói, em 1961, onde morreram 500 pessoas. Diante da tristeza imensurável diante da perda de amigos e familiares, o profeta 'percebeu' uma 'verdade' fundamental da existência: a essência da vida é ser-com-outros. Infelizmente, só percebemos o sentido mais profundo desse enunciado quando perdemos alguém importante, quando sentimos que 'algo de nós' se foi também.O poeta Gentileza abandonou carreira e família para pregar sua mensagem nas ruas e muros do Rio de Janeiro. Deixou de viver-com-os-seus, para viver-com-todos, numa ação paradigmática que deu origem a um mito urbano. Reza a lenda que Gentileza se tornou um renunciante após perder a família no incêndio. Ele mesmo, no entanto, afirmava que era pai de cinco filhos. Seja como for, sua história é conhecida por todos e inspira poetas e artistas até hoje.
O enunciado "Gentileza gera Gentileza" pode ser encontrado na rua, em murais, mas também em camisetas e adesivos. A marca do profeta se tornou imortal, sobreviveu a própria morte física de José Datrino.
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