Antropologia
O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos?
Entrevista com Marcelo MedeirosEconomista com doutorado em Ciências Sociais pela UnB, coordenador do Centro Internacional de Pobreza da ONU no Ipea. Autor de: MEDEIROS, Marcelo . O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade brasileira. São Paulo: Hucitec, 2005.
ÉPOCA - A grande sacada de sua tese foi inverter o foco e estudar os ricos para discutir desigualdade. Parece óbvio, mas nunca tinha sido feito. Como teve a idéia?
Marcelo Medeiros - A idéia básica é o seguinte: o grande problema do Brasil é a desigualdade. Para reduzi-la é preciso redistribuir a renda. A questão era que conhecíamos bem o grupo que vai receber os recursos, mas conhecíamos pouco o grupo que vai ceder os recursos. Se a gente quer de fato reduzir a desigualdade, vamos ter de chegar ao grupo dos mais ricos. Não se trata de deixá-los sem renda nenhuma, não vamos ter de fazer uma expropriação de todas as riquezas, mas eles vão ter de ceder recursos. É indiscutível isso.
ÉPOCA - É difícil estudar os ricos?
Medeiros - Tive de enfrentar uma série de problemas metodológicos para chegar até eles. Eu precisava de uma definição de ricos. Optei por criar uma linha de riqueza. Mas, se existe controvérsia para a linha de pobreza, ela é muito maior numa linha de riqueza. As pessoas têm dificuldade para aceitar o que é uma pessoa rica. Então tive de usar princípios muito sólidos e uma idéia muito simples. Criei uma linha de riqueza definida a partir dos pobres e da desigualdade. Nunca tive a pretensão de dar uma resposta definitiva. Queria dar o primeiro passo. Hoje, a linha da riqueza estaria em torno de R$ 3.500 per capita. Em uma família de quatro pessoas, estaríamos falando de uma renda de cerca de R$ 14 mil. Esses podem não ser ''os ricos'', mas são ''os mais ricos'', o 1% da população que detém 11% da renda. São o grupo prioritário para ceder recursos.
ÉPOCA - Sempre que você apresentava o trabalho, havia protestos. Se, por princípio, numa sociedade capitalista a maioria quer ser rica, por que eles não querem ser reconhecidos como ricos?
Medeiros - As pessoas sempre reagem diante da definição de rico. Pesquisas realizadas em outros países mostram que, quando é pedido que as pessoas se classifiquem entre pobres, classe média e ricos, elas tendem a se classificar no meio. Os pobres como classe média e os ricos também. O que fazem é usar eufemismos para justificar sua posição. Os pobres dizem que são da classe média baixa, os ricos da classe média alta.
ÉPOCA - O que está por trás disso?
Medeiros - Não querer se entender como elite numa sociedade desigual. Só há duas escolhas: ou você aceita a desigualdade, ou aceita que é elite e tem a responsabilidade de reduzir a desigualdade, o que vai implicar algum tipo de perda. Falar de riqueza implica falar de redistribuição e implica reduzir privilégios, reduzir vantagens de quem está no poder. A reação de quem vai perder é imediata.
ÉPOCA - Você desmonta vários mitos sobre a origem da riqueza?
Medeiros - Eu senti que o debate sobre redistribuição de renda no Brasil enfrentaria uma discussão de caráter moral antes de enfrentar uma discussão de caráter técnico. As pessoas vão dizer que são ricas por merecimento: ''Eu mereço porque trabalhei muito, porque estudei, porque me esforço etc.'' O que eu faço é testar essas grandes explicações. Constato, por exemplo, que os pobres trabalham tanto ou mais que os ricos. Provo do ponto de vista quantitativo, com dados do IBGE, que contemplam todos os trabalhadores brasileiros, inclusive os informais. Depois testo se são ricos porque botam mais pessoas no mercado de trabalho, se é porque recebem mais aposentadorias e pensões, se é porque têm mais educação etc. Testo cada uma dessas grandes justificativas e provo que elas não explicam a riqueza.
ÉPOCA - O que explica, então?
Medeiros - Os resultados do trabalho não permitem dizer por que os ricos são ricos. Permitem derrubar uma série de explicações clássicas sobre por que os ricos são ricos. É possível especular. Uma possibilidade forte é o fato de terem educação de elite e conseguirem ocupar os melhores postos de trabalho. Mas seguramente não é só isso. Eles têm uma boa rede de relações, o que permite o acesso aos melhores postos de trabalho, começar a carreira numa posição mais elevada. Receberam uma série de heranças, não só financeira. Existe um fenômeno de reprodução das elites ao longo das gerações. Comparado com os padrões de mobilidade social em vários países do mundo, o brasileiro não é alto. É muito difícil que alguém que não é rico se torne rico no Brasil.
ÉPOCA - Qual é a importância política de jogar o foco sobre os ricos?
Medeiros - A discussão da desigualdade no Brasil sempre foi muito calcada na idéia de que você vai reduzir desigualdade via educação. Esse é o primeiro ponto forte. O segundo é que você não tem de dar o peixe, mas ensinar a pescar. Mas há duas questões que precisamos entender. Educação é crucial para a sociedade brasileira, mas o impacto da educação sobre a desigualdade vai demorar décadas para ser sentido porque é investimento de longo prazo. Mesmo que a gente eduque as crianças num sistema educacional perfeito, leva décadas até que essas crianças bem educadas sejam maioria no mercado de trabalho. E a gente tem um problema de curto prazo para resolver. Política de assistência é crucial para o combate da pobreza no curto e médio prazo. As pessoas precisam entender que por dez, 20 anos vai ser fundamental dar o peixe enquanto se ensina a pescar.
ÉPOCA - Nesse sentido, seu trabalho quebrou fantasias bem arraigadas no senso comum e mesmo na academia?
Medeiros - Mais do senso comum que da academia. Existiam algumas fantasias no Brasil sobre o que vai acabar com a pobreza e reduzir a desigualdade. Uma delas é que as mulheres são pobres porque têm muitos filhos. Só 3% das famílias brasileiras têm mais que três filhos com menos de 10 anos, sinal de que as pessoas já têm poucos filhos, não é preciso aumentar o controle da população. Bate-se muito nessa tecla porque isso transfere para os pobres o problema da pobreza. São pobres porque tiveram muitos filhos. É confortável acreditar nisso. Por outro lado, você pode justificar que é rico porque foi responsável e teve poucos filhos. Então eu vou e testo. O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos? E a resposta é evidente. O tamanho das famílias dos ricos é bem próximo ao da massa das famílias brasileiras. O fato de sua família ser metade da família do outro não explica por que você tem uma renda 27 vezes maior.
(Entrevista publicada na Revista Época, disponível on line: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT868921-1666,00.html
Reportagem enviada pela aluna
Ana Paula Arosi - disciplina Antropologia e Direitos Humanos)
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