publicado originalmente em CH
O antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte começa o ano refletindo sobre as formas de as sociedades lidarem com o desconhecimento e a incerteza que cercam o futuro. Em sua coluna de janeiro, analisa a mistura de razão e imaginação nos nossos ritos de passagem.
Por: Luiz Fernando Dias Duarte
A antropologia tem se dedicado regularmente à análise do conjunto complexo de formas e fenômenos construído pelo ser humano para lidar com as incertezas do futuro. (foto: Felipe Fernandes/ Sxc.hu)
Há um ano, tratei nesta coluna da importância dos rituais de passagem do tempo, como estes que se concentram no chamado Ano Novo (ver ?Ano Novo: vida nova!?). Cheguei a mencionar que uma das práticas aí cultivadas era a dos sacrifícios propiciatórios ? uma série de experiências voltadas para o enfrentamento da incerteza, da imprevisão, de que inevitavelmente se cerca o futuro do mundo, das expectativas de todos nós, essas que uma nova etapa de vida não pode deixar de tornar ainda mais vívidas.
Os ritos de passagem lidam diretamente com os sentimentos complexos associados à tensão entre transformação e continuidade; sobretudo aqueles mais dedicados em nossa cultura ao tempo recorrente: aniversários e fins de ano.
São momentos em que, diferentemente dos grandes acontecimentos exógenos ? que, como as guerras ou as doenças, podem transtornar de uma hora para outra a vida de todos ou a de cada um ?, há a possibilidade de refletir sobre o que se avizinha. Afinal, sabe-se perfeitamente que a cada aniversário há de se seguir outro, assim como ocorre com osréveillons.
Além do mais, diferentemente das guerras e das doenças, os ritos de passagem não vêm marcados por uma certeza de sofrimento e de acrescida inquietação. A incerteza sobre esse futuro ? que poderá ser bom, quem sabe? ? passa então a ser objeto de uma atenção redobrada, submetida a um regime generalizado de avaliações e prognósticos, de revisões de rumo e de formulação de propósitos.
Os gestos propiciatórios se acumulam nesses períodos. Há os muito pequenos, que cada um inventa ou copia ao longo da vida, ?superstições?, amuletos, gestos obsessivos, que permitem fazer convergir a atenção vital, em sua multiplicidade de afetos, sobre os pontos nevrálgicos de projetos individuais ou familiares.
Já se considerou que essas ações pudessem corresponder apenas a salvaguardas contra a ansiedade; mas também já se sublinhou que podem ser importantes mecanismos não racionais para a ação, concentrando o que poderia se dispersar, colocando em foco o que poderia divagar.
Mas há também os grandes processos rituais, como esses, múltiplos, que se sucedem nas festas de fim de ano, a que todos, mal ou bem, devem se submeter: as trocas de presentes, de saudações, de comensalidade. Dentre eles, há um tipo particularmente revelador: o dos votos de felicidade. Nos cartões impressos, coloridos, que tanto caracterizaram as trocas natalinas até a recente transposição da sociabilidade para o interior da nuvem digital, sempre ocorriam, em todas as línguas, as fórmulas estabilizadas desse gesto: Boas Festas, Feliz Natal, Feliz Ano Novo!
Não divergem, em seu caráter de moeda da troca social abrangente, dos demais circuitos de bens prevalecentes nesse período, mas expressam, na sua banalidade mesma, um foco mais abstrato e preciso. As línguas espanhola e italiana conservam diretamente, em suas versões dessas fórmulas, as variantes de um termo muito significativo: os augúrios. Assim como os nossos ?votos?, remetem a um vocabulário religioso antiquíssimo, enraizado na Roma antiga e associado às complexas tecnologias de antecipação do futuro que lá se concentravam, por herança de gregos e etruscos.
Os sacerdotes encarregados dos ?augúrios? ou ?auspícios? constituíam um colegiado eminente, consultado obrigatoriamente no início de qualquer atividade pública de alguma monta. Seu diagnóstico era relativo à aceitação ou não pelos deuses da conveniência de tal atividade. Não se pode dizer que fossem propiciatórios, como os sacrifícios, nem que fossem oraculares, indicando os caminhos a serem trilhados.
Eram ao mesmo tempo divinatórios, já que prediziam a acolhida pelos deuses, e avaliatórios, pois já se referiam a processos em curso, que, com sua intermediação, podiam ser reencaminhados. Tinham uma força ainda maior do que os presságios, como aqueles que antecedem o assassinato de Júlio César na peça que lhe dedicou W. Shakespeare.
A antropologia tem se dedicado regularmente à análise desse conjunto de fenômenos, técnicas sociais complexas de lidar com o futuro, como uma das dimensões do desconhecimento e incerteza que cercam toda experiência humana.
Uma obra inaugural foi a que o antropólogo inglês E. E. Evans-Pritchard dedicou à compreensão da feitiçaria e dos oráculos entre o povo africano dos Azande. Fez-nos compreender que, longe de mera expressão de ignorância e ingenuidade, tratava-se de complexas estratégias de delimitação do sentido da vida social, sempre ameaçado pela incerteza quanto às intenções dos próximos e quanto aos vagares do mundo.
Era a razão humana que presidia àqueles atos, tanto quanto a nossas atividades reflexivas mais altas. Apenas a exigência de esclarecimento era ali mais urgente e ambiciosa, buscando encontrar no cruzamento de variáveis aleatórias um sentido mais abrangente para os fluxos vitais.
A grande maioria das culturas humanas cultiva práticas de adivinhação e predição, como nós mesmos hoje ? particularmente em momentos críticos, como o deste início de 2013. O judaísmo e o cristianismo foram, pelo contrário, extremamente zelosos em denunciar e proibir ? sem completo sucesso ? tais fenômenos, ciosos da onipotência de seu Deus, único senhor do futuro.
A divinação e os augúrios fazem parte de um arsenal de estratégias de mobilização da imaginação e do ideal na construção dos projetos humanos. Seu estatuto é controverso, na suposta oposição à razão e à experiência empírica imediata ? privilegiadas oficialmente pela ciência ocidental ?, mas não é menos crucial por isso.
O grande sociólogo francês E. Durkheim já apontara para o papel do ideal na construção da vida social, e Roy Wagner, importante antropólogo norte-americano contemporâneo, dedicou-se à demonstração do papel da ?invenção? como dimensão estruturante da socialidade humana.
Faz-se isso universalmente, sem dúvida. Mas se o faz de modos muito diversos, concebendo inclusive o próprio futuro de modos distantes do nosso ? este que é objeto de uma ?colonização? sistemática, no dizer do escritor mexicano Octavio Paz.
O sociólogo francês P. Bourdieu analisou com finura um exemplo dessas diferenças na relação com o futuro e com os gestos que o produzem na esfera econômica, ao distinguir a ?previsão? da racionalidade ocidental da ?previdência?, mais holista, dos camponeses da Cabília por ele estudada, no norte da África.
Nós, no tumulto festivo da passagem de ano, combinamos atos de estrita racionalidade, atentando às condições mais concretas em que se terá que viver o ano entrante, com os mais imaginosos e mágicos ? e, no entanto, igualmente essenciais para enfrentar com alguma confiança a opacidade do que ante nós agora se precipita.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro