Domingo, dia de falar sobre Antropologia Brasileira
Antropologia

Domingo, dia de falar sobre Antropologia Brasileira


Antropologia Brasileira em crise

Mércio P. Gomes
Antropólogo, Universidade Federal Fluminense

Em recente reunião da Anpocs, na cidade de Caxambu, MG, alguns antropólogos protagonizaram uma discussão que, segundo a matéria de O Globo ?Antropologia brasileira vive crise e se divide?, de 28/10/2007, parece ter rachado a antropologia em duas bandas antagônicas. De um lado, um grupo que acredita que as centenas de novas identidades que parecem estar surgindo ?de maneira vertiginosa? pelo Brasil afora, especificamente de índios ressurgidos e auto-declarados quilombolas, ?explodiu? o sentido de identidade nacional. Ao ser entrevistado, o porta-voz auto-nomeado dessa visão, Otávio Velho, declara ainda que o Brasil mudou muito com essas novas identidades e que não existe mais uma cultura brasileira em si, fruto da miscigenação e dos processos de unificação que foram estudados e propostos pela antropologia brasileira tradicional e anterior. Aliás, uma antropologia que ele ufanisticamente diz que tem sido um grande sucesso mundo afora, ?com um prestígio fora do comum?. Darcy Ribeiro é citado como se fosse o protagonista protótipo dessa visão tradicional, contra a qual ele se contrapõe como um novo profeta. Durante a reunião uma antropóloga conhecida, inclusive por demonstrar posições firmes e um tanto controversas, Alba Zaluar, fez seu protesto veemente contra a análise de Velho ao dizer que pagava impostos, aturava a burocracia do Estado e elegia seus representantes, portanto, havia nação brasileira, sim senhor.

Difícil levar a sério qualquer das posições. Parece briga de colegas enfezados uns com os outros. Certamente o quê Zaluar exprime em sua ira é um sentido político de nação, não propriamente o sentido cultural de nação que Velho tem em mente. Ela deve saber disso. Porém, achar que uma minoria diminuta em números de alguns grupos localizados que se auto-declaram índios ressurgidos ou que estão vivendo nas cidades, bem como comunidades de negros e mulatos que pedem o reconhecimento de terem sido quilombolas no passado (sendo ou não verdade) não ameaçarão nem o sentido de nacionalidade brasileira, nem o destino da nação. Por mais que esses dois segmentos sociais estejam hoje fazendo algum sucesso nos cursos de pós-graduação de antropologia e seus interessados diretos recebendo bolsas da Capes para mestrado e doutorado. É curioso ouvir Velho, um veterano antropólogo, usar como argumento de mudanças culturais no Brasil sua surpresa com a existência de índios no Nordeste e nos estados sulinos, e achar que a questão indígena estivera antes confinada a ?índios isolados? na Amazônia. Pode ser que ele nunca tenha dado uma aula sobre índios, mas deve ter lido algumas coisas no seu tempo de aluno e certamente tem colegas onde trabalha que conhecem do assunto. Aliás, são alguns dos seus colegas que mais apregoam a importância de índios ressurgidos no panorama cultural brasileiro.

De outro lado, há a questão mais candente de se vale a pena ou não, se é culturalmente certo ou não, se socialmente fará diferença ou não, a política de estabelecer cotas nas universidades ou em outros setores do serviço público para negros, ou melhor, populações afro-descendentes, bem como indígenas, ou, índio-descendentes (na Bahia, pelo menos, é assim que o movimento urbano se intitula). Aqui nós temos uma polarização criada entre dois grupos bastante bem articulados em todos os sentidos, e, no meio, um número bem maior de pessoas que ora simpatizam com uma posição, ora com a outra, e não se decidem ou não querem tomar partido. Isto, de fato, abriu uma cunha na comunidade antropológica, antes quase hegemonicamente favorável ao sentido de reconhecer que no Brasil existe um modus vivendi especial em relação à convivência interracial e ao modo como se opera o preconceito de cor ou de origem, mas reconhecendo a visão de que prevalece um conservadorismo de classe-raça que dificulta a diminuição do nosso tipo de racismo e sua conseqüente desigualdade econômica. Essa visão sugeria que o Brasil deveria trabalhar soluções próprias e não imitar os Estados Unidos ou outros países com intensos problemas de racismo mas com teores diferentes. Porém, o movimento negro ou de afro-descendentes no Brasil, apoiado pelo PT e pelos movimentos sociais e de direitos humanos (com inspiração euro-americana), embarcaram rapidamente na visão contrária. Isto é, de que só por um processo brusco de mudanças forçadas pelo Estado é que as diferenças sociais e econômicas irão mudar, para daí, ou concomitantemente, partirem para as definitivas mudanças culturais que venham a dar cabo do racismo brasileiro.

Essa discussão é rigorosa e produtiva intelectualmente? Considero que sim, mesmo quando alcança posições antagônicas e disputas ad hominem. Afinal, desde que um ramo importante da antropologia brasileira foi escanteado pelos colegas que dominaram o sistema universitário e de bolsas da Capes e CNPq, aqueles ligados a uma antropologia marxista com laivos de posicionamento nativista (personificado em Darcy Ribeiro), parecia que a Antropologia brasileira estava em concordância com tudo que saía nos congressos e reuniões corporativas.

Portanto, aguardo novos embates entre as duas posições polares. Em breve haverá de surgir posições intermediárias que façam sentido e aí o problema vai alcançar ares mais científicos. Por enquanto, a motivação que deu partida à discussão foi política. O movimento afro-descendente radicalizou sua posição de que uma discriminação positiva para os afro-descendentes seria imprescindível para que venha a haver um influxo de seus membros nas camadas médias da sociedade brasileira através de sua participação no serviço público e nas empresas privadas. A qualificação de afro-descendentes se dará pela facilitação de sua entrada na universidade (e outros setores do serviço público) e pela obrigação de receberem um treinamento especial para poderem competir com os não afro-descendentes.

Nos Estados Unidos esse processo se chamou ?ação afirmativa?, tendo sido criado em 1969, no auge do movimento negro (sendo o mais contundente o grupo Black Power), como resposta do ?establishment? a esse movimento e outros que corriam naquele tempo. (É de se notar que o presidente americano da época era Richard Nixon, um notório conservador.) Passados quase 40 anos, os resultados da ação afirmativa americana apontam para um pequeno crescimento e a consolidação de um segmento afro-descendente na classe média norte-americana, da prevalência de uma atitude respeitosa legalista entre as ?raças? dos Estados Unidos, incluindo os latino-descendentes, mas a continuidade de um sentimento de mal estar ou desconforto sociocultural no nível do relacionamento e convivência entre pessoas consideradas de raças diferentes. Além do mais, nos últimos tempos surge o movimento dos ?mestiços? (half-breeds), filhos de pai negro com mãe branca, ou vice-versa, que não desejam ser rotulados nem como um nem como outro, mas como uma mistura dos dois, uma questão inimaginada anteriormente, e difícil, que o Brasil levara dois ou três séculos para resolver satisfatoriamente.

Os defensores da atitude tradicional brasileira de que nosso problema maior não é o preconceito de raça, que, como tal, não existiria de direito, na realidade científica, só de fato, na realidade cultural, e sim o preconceito de classe, acham que uma programa de ação afirmativa levantaria sentimentos de discriminação mútua que há muito a ética brasileira tinha superado e que teria desse modo caracterizado nosso modo especial de ser. Que muito mais adequado e próprio dentro da cultura brasileira seria acionar políticas de compensação educativa para todos, em especial a camada imensa de pobres em geral, onde estão afro-descendentes, índio-descendentes e branco-descendentes, isto é, mestiços, mulatos e morenos em geral. A impertinência de levantar a bandeira de afro-descendente poderia ter um preço alto de desestruturação ou desequilíbrio da cultura brasileira, especificamente nos sentidos sentimental e de convivência social. (Já os críticos identificam esse argumento como sendo manobra ideológica para encobrir a realidade indefensável da discriminação racial que os negros sofrem neste país. E dão como exemplos os dados econômicos do IBGE.) Para o grupo tradicional a política de cotas vai provocar a abertura de novos impasses na cultura brasileira, e dá como exemplos os casos de irmãos (até gêmeos) que são reconhecidos ora como afro-descendentes, ora como ?brancos?, e a convivência bastante digna e sem discriminação entre brancos e negros sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade nacional. Alegam, por fim, que o movimento afro-descendente é quase que exclusivo às classes médias negras, com alta dosagem de funcionários públicos, intelectuais e professores, e que a imensa maioria dos assim auto-denominados ?pardos? (categoria ainda prevalente no Censos do IBGE, para surpresa de muitos de nós) preferem essa categoria de identificação racial do que de negro como tal, seja pelo motivo que for.

Postos nesses termos, francos e sem subterfúgios, o debate pode render, embora o lado da política de cotas esteja na frente, por ela ter sido incorporada como política do atual governo federal e ter sido posta em prática em diversas universidades e estados. No Rio de Janeiro, a experiência na universidade estadual é bastante intensa, com resultados ainda incertos. Porém, o outro lado continua sem ação política. Isto é, a melhoria do ensino público para todos, que é a sua bandeira de superação dos problemas de desigualdade racial, está longe de ter se alavancado nos últimos tempos. Ao contrário, tudo indica que a educação pública se deteriorou com algumas ações propostas pelo MEC e praticadas pelas secretarias de educação. Sendo uma delas a aprovação do aluno de ano a ano, independente da qualidade de seu aprendizado. E as grandes faltas de professores em matérias essenciais, seu despreparo generalizado, os baixos salários, a desmotivação cultural dos alunos, etc., etc.

O importante no debate entre antropólogos é que levem a fundo e não diluam quando chegarem na questão de pôr suas doses de pertinência (como cidadãos), de culpa (como classe social) e de responsabilidade (como professores) na balança de avaliação. Já vimos economistas e cientistas políticos criticarem ações de governo ou propostas de políticas públicas em nome de uma racionalidade científica para, ao final, nos darmos conta de que assim estavam fazendo só e exclusivamente para serem compensados social e economicamente num futuro desejado. Os antropólogos não detêm fontes de poder e influência, mas falam para a sociedade brasileira sobre identidade, cultura e história, assuntos de extrema importância para a paz cultural e o bem estar da população em geral. Isto é mais importante que dinheiro.

O que se espera dos antropólogos brasileiros é, em primeiro lugar, respeito às tradições transcendentais do Brasil, criadas com muito sacrifício ao longo de uma história tormentosa, as quais não podem ser jogadas fora por atitudes extemporâneas. E em segundo lugar, vontade e compromisso de ajudar nas transformações que se fazem necessárias para que o país se torne um lugar de melhores condições de vida e de felicidade humana. Assim, uma dose de experimentalismo tem que ser buscada com a consciência preclara da experimentação. Se esta não é uma visão de síntese das opções oferecidas pela atualidade brasileira, pode ser vista como uma opção a mais no âmbito da nossa cultura e da nossa consciência crítica.



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