Manifesto da etnia Xukuru-Kariri, na luta pelo reconhecimento e devolução de suas Terras Imemoriais.
Palmeira dos Índios – Alagoas, em 6 de março de 2008.
1. Há mais de dois séculos, quando a Coroa Portuguesa iniciou no Brasil um novo ciclo de colonização, ocupando e povoando efetivamente os sertões nordestinos, começou também a história de sofrimento e opressão de nossos antepassados, submetidos então ao pesado caçuá de contribuir para a construção da identidade nacional brasileira.
2. Como pássaros antes livres, arrancados das matas onde viviam, os Xukuru e os Kariri foram engaiolados obrigatoriamente em aldeias fixas, onde deveriam ser preparados, por meio de um processo específico de catequese, para servirem no árduo trabalho nas lavouras e nas áreas de criação de gado que não lhes pertenciam.
3. A cidade de Palmeira dos Índios é fruto desse processo: nasceu como um aldeamento missionário sob a responsabilidade dos frades capuchinhos, ao redor do qual foram erguidas as cercas marginalizantes dos fazendeiros e pequenos proprietários. O poder devastador do "branco" assentou-se sobre o sangue e a carne dos índios, embora não tenha conseguido suplantar o seu Espírito de Luta.
4. Expulsos de seu lar, seqüestrados de suas terras, nossos ancestrais transformaram-se em gente estranha, perdendo a língua nativa, esquecendo os usos e costumes próprios, deixando de lado os seus atributos culturais, forçadamente abrindo mão da identidade indígena.
5. Apesar de todas as condições adversas, porém, encontramos na história inúmeros exemplos – testemunhos vivos e verdadeiros – de resistência, que mantiveram elevados, bem no alto, o candeeiro da esperança e da ternura que tem iluminado a nossa caminhada até aqui. Foi graças a eles que a memória do nosso povo atravessou o oceano de calamidades impostas pela cultura dominante, e é em memória deles que celebramos este dia histórico para as nações indígenas do Nordeste: o dia em que a Comunidade Xukuru-Palmeira, da etnia Xukuru-Kariri, cujos índios antes foram maldosamente pré-conceituados como "andarilhos calados", elevou bem alto a voz por justiça, e adentrou uma parte das Terras Prometidas ao seu povo há tempos imemoriais.
6. Como fez aquele povo negro há pouco mais de quatro décadas passadas, marchando sobre a Capital estadunidense na busca do reconhecimento da igualdade de direitos civis, nós hoje aqui estamos para cobrar também uma nota promissória, assinada pelo Estado Brasileiro há muitos anos. É uma dívida para com todo o povo pobre do nosso País – rico em diversidade, mas profundamente marcado por desigualdades, cometedor de inúmeros pecados sociais.
7. Nós, índios e índias de Palmeira, tornados empobrecidos, temos alimentado continuamente a ânsia do tão sonhado respeito ao nosso modo de vida e organização que tentamos, a duras penas e por incalculáveis sacrifícios, resgatar e preservar, mesmo que às escondidas.
8. Poucos como nós, da Comunidade Xukuru-Palmeira, têm consciência da intensidade da dor de ver sua aldeia se transformar em periferia; poucos têm idéia da imensa angústia e do aparentemente infindável desespero de ver sua família se desintegrar no alcoolismo, no uso e no tráfico de drogas, na prostituição adulta e infantil, no desemprego e na exploração do trabalho, na falta do acesso à educação, à moradia, à saúde, ao espaço para zelar por suas obrigações Sagradas, enfim, excluídos do direito à vida digna, do direito de ser humano, do direito de ser liberto, do direito de ser índio, do direito de ser gente.
9. Queremos a Terra, mas não a queremos como a querem os nossos exploradores! Queremos a Terra, não só porque ela nos pertence, mas principalmente porque somos nós que pertencemos a ela! Longe de nossa Mãe-Terra, não passamos de filhos e filhas abandonados. É dela que tiramos nosso sustento. É nela que montamos abrigo. É com ela que louvamos as energias encantadas que nos fazem ser comunidade – um só povo em comunhão, unido pelo mesmo Amor. É para ela que um dia todos nós re-gressaremos, mas nutrindo a fé de que podemos viver com dignidade, antes desse dia chegar.
10. Somos 94 famílias des-aldeadas à espera de que o Departamento de Assuntos Fundiários – DAF, órgão vinculado à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, regularize a nossa situação em caráter emergencial. Requeremos, em nome de Nosso Pai Tupã e em nome de quem pode mais do que a nossa simples matéria, que o Estado Brasileiro cumpra o que nos prometeu, e que quite sua dívida para conosco, conforme o dito na nota promissória assinada há vinte anos, na promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil.
11. Enquanto isso, permaneceremos aqui, nesta área que re-tomamos pacificamente, na expectativa de ocuparmos definitivamente aquilo que já foi nosso, resistindo, produzindo e transformando-o em um ambiente melhor para todos e todas.
12. Para tanto, conclamamos os nossos irmãos e irmãs, re-conhecidos não pela cor da pele – mas sim pela cor do sangue, a abraçar conosco essa causa. Especialmente os guerreiros e guerreiras da paz de outras etnias – afro-indígenas – presentes conosco desde o início da nossa organização, bem como aos parentes e parentas da valorosa Nação Xukuru-Kariri, à qual pertencemos, pois a vitória na luta pela Demarcação de nossas Terras dependerá tão-somente da união de todos e do compromisso de cada um de nós.
13. Conclamamos todo o Povo de Deus, nuestros hermanos y hermanas de América Latina, os aliados e apoiadores dos vários órgãos, instituições e entidades que vêm se pondo historicamente a favor da garantia dos Direitos Humanos e da defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, assim como a todos os trabalhadores e trabalhadoras – do campo e da cidade – como nós, a assumirem conosco esta bandeira, a favor de uma existência mais justa, solidária e fraterna.
Sambeá, Nhaehí, Uná!
Resgatar, Reunir, Repartir!
Avante meu povo! Batam palmas e digam "Viva!", porque os índios estão na Terra!