Anões, antropólogos e cabeças de bacalhau existem?
Antropologia

Anões, antropólogos e cabeças de bacalhau existem?


O post "Coisas que você nunca viu: cabeça de bacalhau, enterro de anão e antropólogo que faz laudo", publicado no blog de Reinaldo Azevedo, é um bom exemplo de desinformação popular. No texto, que faz referência a um suposto laudo da Embrapa sobre 15 processos de reconhecimento de Terras Indígenas no Paraná, o autor pergunta porque a população não sabe nada, ou quase nada, sobre os procedimentos de reconhecimento de terras indígenas no país. Além de desconsiderar o trabalho dos antropólogos que fazem laudos, Azevedo utiliza como referência um estudo da Embrapa sem esclarecer como foi produzido, o que é, certamente, uma contradição evidente com o seu próprio argumento. Nesse caso, sim, vale questionar: quem fez os estudos? Especialistas de que área do conhecimento foram consultados? Quais procedimentos foram utilizados? A Embrapa é, realmente, a instituição mais apropriada para fazer esse tipo de trabalho?

Mas é pela descontextualização da informação que o texto se torna um dispositivo de desinformação. Afinal,  os processos de reconhecimento de terras indígenas seguem preceitos e regras legais, instituídas através de dispositivos jurídicos internos à FUNAI e previstos na legislação (Decreto 1.775/1996; Portaria 14/1996; Portaria 116/2012; e Instrução Normativa 02/2012). Essas regras estão embasadas em um marco legal constitucional e reproduzem princípios e diretrizes anunciadas na CF de 1988 e no Estatuto do Índio (1973). De fato, os procedimentos de pesquisa envolvidos nos processos de demarcação de terras são de conhecimento público, podendo ser facilmente acessados no próprio site da FUNAI, no link sobre "legislação", onde também podem ser acessados outras leis e dispositivos jurídicos associados aos direitos indígenas e à regulamentação do funcionamento deste órgão indigenista (www.funai.gov.br). Inclusive, lá encontramos o "Manual do Antropólogo", documento que reúne orientação para a elaboração de laudos.
Ao que parece, Azevedo não quer se informar e informar o seu público, pois não faz qualquer referência à legislação existente, apesar de não se furtar em fazer alegações maldosas sobre os antropólogos.

Mais uma vez, também no que se refere à antropologia, é a desinformação que prevalece sobre o conhecimento. Apesar de Azevedo se questionar sobre a existência de "antropólogos que fazem laudo" (será que eles existem? Alguém já viu um?), o seu texto não informa nada sobre a antropologia ou sobre os profissionais que atuam na Funai. Ficamos sem saber como são formados os antropólogos e, mais especificamente, como se dá a aplicação do conhecimento antropológico na elaboração de laudos jurídicos.
Se formos julgar pelas alegações levianas de pessoas como Azevedo, o raciocínio antropológico seria reduzido a um conhecimento "místico" produzido por profissionais de formação duvidosa, que agem nos bastidores do poder como dispositivos "ideológicos" ocultos.

Mas aqui também a intenção do autor é mais 'ocultar' do que 'revelar', pois não só a antropologia tem uma história centenária, como também é regida por um código de ética comum e pela convivência de paradigmas epistemológicos coletivos, compartilhados publicamente e que mudam ao longo do tempo, pois são discutidos em eventos científicos nacionais e internacionais. Os critérios metodológicos de produção do conhecimento antropológico - incluindo aqueles associados a laudos e outros processos legais - são definidos em um espaço de debate e discussão. Da mesma forma, os resultados das pesquisas antropológicas são publicados em artigos, relatórios e livros e, desta forma, passam pela avaliação dos pares, como em qualquer outra disciplina científica. O profissional da área passa por um extenso processo de formação teórico-metodológica e certamente está preparado para enfrentar os desafios contemporâneos, atuando na academia e em instituição públicas e civis. Não há nada de oculto na antropologia e os antropólogos podem ser encontrados em laboratórios, universidades e outras instituições científicas brasileira e internacionais.

Temos que começar a campanha: "Azevedo, acredite, antropólogos existem!"  

Ora, o fato de pessoas desinformadas não irem em busca de informações sobre a antropologia, os antropólogos que fazem laudo e os procedimentos legais de reconhecimento de TI's, não atesta qualquer qualidade 'obscura' ou 'velada' do processo em si, mas apenas o descaso de determinados setores da sociedade brasileira com os preceitos legais e constitucionais vigentes no país.

Como sempre, os porta-vozes da direita fazem uso de fatos isolados e descontextualizados para deslegitimar os direitos indígenas e, com isso, ajudam a proclamar o descaso para com as ações da FUNAI. Promovem, desta forma, o pior (de)serviço que um jornalista pode oferecer: a produção da desinformação. É isso que tem feito, incessantemente, a revista "Veja", que expressa claramente um vínculo carnal com os interesses das classes latifundiárias. Ali também a descontextualização e o ocultamento explícito e implícito de informações produz a desinformação sobre fatos e eventos da política nacional.

Por outro lado, a retórica da revelação messiânica assumida pelo tom de denúncia do texto de Azevedo é desmentida, na prática, pelo seu trabalho constante de velamento e distorção de informações. Em nenhum momento Azevedo revela os procedimentos utilizados pela Embrapa para produzir as suas conclusões. Ficamos sem saber como que uma instituição sem qualquer histórico de realização de estudos de reconhecimento de TI's produziu afirmações assim tão contundentes e afinadas com os interesses dos ruralistas? Também ficamos sem saber quem são os pesquisadores ou autores do laudo, sua formação e especialidade? Também ficamos impossibilitados de decifrar as entrelinhas de suas afirmações, cuja mensagem subliminar está inscrita na breve menção feita à ministra da casa civil e aos usos que a paranaense estaria dando a tal 'relatório' da Embrapa nos bastidores do governo federal.

Aqui, sim, navegamos em um mar de ocultismo explícito, onde, como em uma mágica, o autor retira da sua cartola afirmações gerais, ambíguas e imprecisas, ao mesmo tempo em que oculta as relações libidinosas que interligam ministros do governo Dilma aos interesses da classe latifundiária.

Diferente do que afirma Azevedo, os antropólogos que emitem laudos também atestam sua autoria. Com isso, podem ser facilmente consultados. Isso ocorre porque esses antropólogos existem, estão vivos, possuem residência e profissão notória, podendo falar por si próprios, esclarecendo ou se defendendo de acusações e denuncias.

O mesmo não ocorre com os técnicos responsáveis pelo laudo da Embrapa, figuras anônimas cujas conclusões são afirmadas por Azevedo sem qualquer esclarecimento sobre os procedimentos técnicos utilizados para fabricá-las. Se, por um lado, os laudos da Funai devem seguir preceitos jurídicos de conhecimento público instituídos através do devido processo legal, produzindo laudos de acesso livre; por outro, os estudos realizados pela Embrapa representam uma verdadeira caixa-preta.

Por último, mas não menos importante, vale notar o tremendo preconceito do autor do blog com os anões, sugerindo que os mesmos não são enterrados. Ora, não é pelo fato do senhor nunca ter comparecido ao enterro de um anão que esses eventos não ocorrem, da mesma forma que não precisamos ir até o sol para saber que ele existe. Basta sair numa manha ensolarada e fria para sentir a sua presença, revelada a partir dos  efeitos dos raios solares sobre os nossos corpos, que são afetados e, desta forma, se aquecem.  Os anões são seres vivos, homens de carne e osso e, por isso, morrem e são sepultados conforme a sua crença. Além do mais, o tom jocoso da afirmação visa projetar uma imagem negativa sobre os anões, representados no post como figuras exóticas e enigmáticas, uma injustiça com um setor tão importante da sociedade brasileira.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado também às cabeças de bacalhau, afinal, é um erro acreditar que um peixe poderia viver sem uma cabeça. Não é porque não vemos a cabeça ao comer o bacalhau que ela não existe. Os pescadores da Noruega não só conhecem a cabeça como o peixe ainda vivo, seus hábitos de vida, preferências alimentares e outros tantos detalhes sobre o mundo aquático e seus segredos. Inclusive, se Azevedo fosse uma pessoa minimamente informada sobre a vida do bacalhau e seus usos culinários saberia que em alguns lugares as cabeças desses peixes são especiarias disputadas com fervor.

Mas o pior de tudo é que esse tipo de jornalismo superficial e preconceituoso conta com uma ampla legião de comentadores, cujas opiniões conseguem ser mais absurdas do que aquelas pronunciadas por Azevedo. Uma breve leitura dos comentários publicados no post sobre o tal estudo enigmático da Embrapa - encomendado pela ministra da casa civil - revela uma mentalidade racista, preconceituosa e desumana. A palavra mais apropriada diante da mentalidade expressa nessas manifestações cegas de apoio revela algo muito mais sinistro e nefasto: a permanência e a reprodução mais ou menos velada de uma mentalidade política fascista e autoritária, regida, por um lado, pela tranquilidade que só a ignorância dá aos fracos de espírito, por outro, pela violência própria aos bárbaros, que só sabem destruir e roubar a sociedade brasileira.



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